A
noite de Babilónia
«Os raios ardentes de Shamash, o deus-sol,
despediam-se pouco a pouco de Babilónia, levando com eles o calor abrasador. Porém,
havia doze dias que a capital de Nabucodonosor permanecia num estado de loucura,
loucura que atingiria, naquela noite, o paroxismo porque se estava no último dia
das grandes festas do ano novo, celebrado todas as Primaveras no mês de Nisan. Os
heróis das festas mais importantes do ano eram Marduk, deus da prosperidade, da
fertilidade e senhor dos deuses e Ishtar, deusa do Amoq filha de Sin, o
deus-lua e irmã de Shamash. E quando a noite descesse sobre a cidade, Marduk possuiria
Ishtar na câmara-capela dourada que coroava os sete andares multicoloridos do Entemenanki,
o maior zigurate de Babilónia, o zigurate do templo de Marduk, o Esagil.
Sob os raios declinantes do Sol, as
cores que tingiam cada um dos andares da torre exaltavam-se e valorizavam-se
entre si. O branco de Ishtar encorujava o negro de Adar, que por sua vez estimulava
o púrpura profundo de Marduk. Depois, comprimindo-se sobre o andar inferior,
vinham o azul-celeste de Nebu, o laranja-brilhante de Nergal, a doçura prateada
de Sin e por fim o dourado fulgurante de Shamash. Não havia nada mais belo, para
um coração babilónico, do que o Entemenanki, cujo esplendor se erguia entre o imenso
quadrilátero do templo e o palácio do rei, adornado pela massa verdejante dos Jardins
Suspensos, maravilha do mundo antigo. A via das Procissões e o Eufrates banhavam,
de um lado e outro, os três edifícios, que por sua vez ocupavam o comprimento total
da cidade, desde a porta de Urash à de Ishtar, palco nos últimos doze dias de
cerimónias incessantes e faustosas porque todos os outros deuses das cidades e aldeias
do império de Entre-os-Rios vinham prestar homenagem a Marduk, criador, destruidor, pleno de compaixão,
piedade e, por sua ordem, de benevolência para com os deuses...
Os fiéis vinham, por vezes, de muito
longe, mesmo de muito longe para aqueles que transportavam às costas as pesadas
estátuas sob o sol implacável quando o transporte por via fluvial ou pelos canais
era impossível. Porém, a sorte de tais escravos só atraía a piedade dos cativos
que, escondidos por baixo dos três andares dos fabulosos Jardins Suspensos,
accionavam sem cessar as imensas noras encarregadas de içar a água do rio até às
luxuriantes maravilhas construídas por capricho de uma rainha lendária... Enquanto
durassem as festas, os xilofones, as flautas, os tambores, as citaras, os címbalos
e os sistros escoltariam os cortejos sagrados desde o rio ou das portas da cidade
até ao adro do Esagil, ritmando as danças dos sacerdotes e das cortesãs sagradas,
que se sucediam sem cessar. A maré de trajes brancos, amarelos e vermelhos,
enriquecidos com os famosos bordados babilónicos cujo segredo se perdeu, invadia
as ruas, os pátios e a grande via das Procissões. As jóias de ouro e prata
brilhavam, mas menos do que as couraças polidas dos soldados de barba negra
encaracolada, mais cerrada do que o astracã, vestidos com túnicas púrpura. A cidade,
febril, transbordava de cor, sufocava devido aos perfumes e aos odores das cozinhas
ao ar livre e naquela última noite embriagar-se-ia de amor..., e de vinho de
tâmara.
À medida
que a luz declinava, os olhares viravam-se de maneira irresistível para o alto
do Entemenanki onde na última capela, que parecia suspensa do céu como uma
jóia, uma virgem esperava entre um grande leito de marfim cheio de almofadas de
seda e uma mesa de ouro puro, os únicos móveis da câmara divina. A jovem,
envolta em véus para que ninguém lhe visse a beleza, reservada apenas ao deus,
chegara quando o Sol começara a sua descida para o horizonte, transportada, como
a estátua da própria Ishtar, aos ombros de um grupo cintilante de sacerdotisas do
Amor. A liteira depositara-a na base do zigurate, em frente da escadaria que ia
dar ao primeiro andar, o branco, e que ela subira sozinha, devagar, deixando cair
o primeiro véu, também ele branco, no último degrau. Em seguida a jovem subira a
escadaria negra de Adar e abandonara, no último degrau, o véu negro. O púrpura caíra-lhe
dos ombros ao chegar à base do quarto andar, azul como o céu de Verão e o azul à
entrada do terraço onde se erguia Nergal, o cor de laranja. Em seguida fora a vez
do quinto. Por fim, lá no alto, contra o céu, a noiva do deus, silhueta delicada,
prateada e depois dourada, pusera os pés no último terraço onde a esperavam os sacerdotes
para a conduzir à câmara nupcial, na soleira da qual ela deixara cair o último véu
para entrar nua e esperar, oferecida, aquele que havia de vir». In
Juliette Benzoni, Na Cama dos Reis, Noites de Núpcias, 2010, tradução de Nuno
Lorena, Planeta Manuscrito, Lisboa, 2012/2013, ISBN 978-989-657-351-5.
Cortesia
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