«Charles Dellon veio a Portugal muito
contra a sua vontade e na pior das condições possíveis; desembarcou em Lisboa,
no dia 16 de Dezembro de 1676,
carregado de ferros, com destino à Galé onde fora condenado pela Inquisição (maldita) de Goa a cumprir
a pena de cinco anos de trabalhos forçados. No auto-de-fé realizado em Goa, no dia
12 de Janeiro desse mesmo ano, figurara como herético.
(...)
Até à altura a que se reporta a
sua narrativa na Relation, Dellon conhece as prisões de Damão, Baçaim e Goa. Assim
as descreve: a prisão de Damão fica a nível
inferior ao do rio próximo, o que a torna húmida e malsã (...) as paredes são espessas
e ocupa duas grandes salas, uma subterrânea e outra no piso superior: os homens
estão na de baixo e as mulheres na de cima. A maior tem 40 pés de comprimento e
15 de largura e a outra tem dois terços destas dimensões. Nesse espaço encontrávamo-nos
cerca de 40 homens e não havia qualquer local para satisfazer as necessidades ordinárias,
pelo que o compartimento tinha de ser baldeado; as águas, acumulando-se,
formavam uma espécie de charco. As mulheres, no seu andar, não tinham melhores
cómodos, a não ser a vantagem de as águas se escoarem pelas fisgas das tábuas do
sobrado para a nossa prisão onde todas as águas ficavam estagnadas Da prisão
de Baçaim diz: é maior e menos suja que a
de Damão. A prisão de Goa é por ele classificada
como a mais suja, a mais obscura e a mais horrenda de todas as que havia conhecido
e não crê que possa haver outra mais fedorenta e mais repugnante: é uma espécie
de cave onde só por uma pequena fresta penetra a luz do dia, mas onde não passa
o mais fraco raio de sol. O fedor é extremo, porque não há outro lugar para satisfazer
as necessidades dos prisioneiros senão um poço aberto no chão, a meio da casa, onde
não é possível aproximar-se alguém por causa dos dejetos que o circundam. ...
O autor narra a sua partida de Goa estada em S. Salvador, no Brasil, desembarque
em Lisboa e os seis meses que aqui permaneceu, preso na Galé. O que conheceu e descreveu
de Lisboa foi pouco e pode bem dizer-se que nunca se afastou do que então era o
centro da cidade. No entanto, se foi pouco o que viu, o que deixou relatado tem
valor documental, principalmente a descrição da prisão da Galé e da vida dos forçados,
de cuja sorte participava. Apesar de perseguido, preso e condenado pela Inquisição
(maldita) a uma pena
infamante, não deixou Portugal a dizer mal da terra e das gentes. In Branco
Chaves
Partida de Goa. Chegada ao Brasil
Fui conduzido, com grilhetas nos pés,
à nau que se encontrava na enseada pronta a partir para Portugal; confiaram-me ao
mestre da tripulação que ficou encarregado de me entregar à Inquisição (maldita) de Lisboa. [,ogo
que o capitão recebeu os últimos despachos, levantou âncora, em 27 de Janeiro
de 1676, e nesse mesmo dia tiraram-me
a grilheta. A viagem foi feliz até ao Brasil, onde chegámos no mês de Março.
Logo que se fundeou na Baía de Todos os Santos, o mestre, a cuja
responsabilidade eu vinha entregue, levou-me para terra, conduziu-me ao palácio
do governador e daí à prisão pública, onde me entregou ao carcereiro. Permaneci
nesta prisão todo o tempo que a nau demorou no porto, mas por mercê de alguns
amigos que eu tinha feito neste país, gozei durante o tempo que ali estive da liberdade
de poder sair durante o dia e só de noite ficar encarcerado.
Em
todo o Brasil o clima é temperado e aprazível, os ares são puros, a terra fértil
e por toda a costa são frequentes os bons ancoradouros onde os navios podem
ficar em segurança. Os naturais do Brasil não são negros, mas também não são completamente
brancos, tendendo principalmente para o vermelho. São bem-feitos de corpo, usam
os cabelos compridos e, embora não tenham o rosto disforme, têm uma expressão de
ferocidade, que se não pode bem definir, mas que os assemelha muito à dos tártaros
setentrionais. São muito aguerridos, o que os torna cruéis para os prisioneiros
que fazem, os quais matam e comem.
Em muitos sítios do Brasil, os homens
e as mulheres andam nus, mas desde que os Portugueses tomaram posse do país,
aqueles que com eles têm convivido, têm, pouco a pouco, tomado o hábito de se vestirem,
perderam o costume de comer carne humana, havendo muitos que se fizeram cristãos.
Os portugueses têm acasalado com mulheres do Brasil, pelo que acontece haver
hoje ali mais mestiços que portugueses puros. Como todo o Brasil é frequentemente
regado por chuvas, as pastagens são muito boas e facultam facilmente a alimentação
de grande quantidade de gado, e acresce também que nenhuma parte do mundo é banhada
por tão excelentes rios como a América. No Brasil facilmente o homem se apercebe
desta liberalidade da natureza; a abundância de água não só fertiliza as terras,
como também a abundância de peixes que há no mar favorece a alimentação das populações
vizinhas das costas». In José Brandão, Este é o Reino de Portugal,
Saída de Emergência,2013, ISBN 978-989-637-457-0
Cortesia de SEmergência/JDACT