Rachel. 5 de Julho de 2013
«(…) Um sol magnífico, o céu
azul, mas ninguém com quem os partilhar, nada que fazer. É mais difícil viver
assim no Verão, da maneira como eu tenho vivido, quando os dias são tão longos,
há tanta luz, tão pouca ajuda da noite, com toda a gente na rua a ser tão
obviamente e tão agressivamente feliz. É esgotante, e faz-nos sentir ainda
pior, por não nos podermos juntar à festa. Tenho todo o fim de semana pela
frente, 48 horas vazias para matar. Levo a lata uma vez mais à boca, mas não
sobra uma única gota.
… 8 de Julho de 2013
É tão bom estar de volta ao
comboio das 8h04. Não estou propriamente desejosa de chegar a Londres para mais
uma semana, não me apetece por aí além estar em Londres, aliás. Só quero
recostar-me neste banco de veludo coçado, a sentir o calor do sol que entra
pela janela, a sentir a carruagem a abanar para um lado e para o outro e para
trás e para a frente, a cadência reconfortante das rodas nos carris. Prefiro
muito mais estar aqui, a olhar para as casas junto à linha, do que em quase todos
os lugares do mundo. Há um sinal avariado na linha, algures a meio da viagem.
Presumo que esteja avariado, pelo menos, porque está praticamente sempre vermelho;
temos de ficar ali parados na maioria das vezes, às vezes só uns segundos, outras
vezes minutos a fio. Se eu me sentar na carruagem D, como faço normalmente, e se
o comboio parar no sinal, como acontece quase sempre, tenho uma perspectiva
perfeita para a minha casa preferida junto à linha: o n.º 15. O n.º 15 é muito parecido
com o resto das casas ao longo deste troço da linha: uma vivenda vitoriana geminada,
de dois pisos, com vista para o pequeno e bem-cuidado jardim das traseiras, 6 metros
de terreno delimitados por uma cerca e depois mais uns metros de terra de ninguém
à beira da linha do comboio. Conheço esta casa de cor e salteado. Conheço cada tijolo,
a cor das cortinas no quarto do primeiro andar (beges, com um estampado
azul-escuro), e sei que a tinta dos caixilhos da janela da casa de banho está
descascada e que faltam quatro telhas no telhado do lado direito da casa.
Sei que, nas noites mais quentes de
Verão, os moradores da casa, o Jason e a Jess, costumam saltar a janela de guilhotina
para se sentarem no terraço improvisado por cima do alpendre da cozinha. Fazem um
casal perfeito e luminoso. Ele tem o cabelo preto e um belo corpo, é forte,
protector e bondoso. Têm uma gargalhada magnífica. Ela é uma daquelas mulheres pequeninas,
uma boneca com a pele branquíssima e o cabelo louro bastante curto. Tem uma
estrutura óssea que lhe permite esse género de corte, com as maçãs do rosto salientes
salpicadas de sardas e um queixo bem desenhado. Procuro-os enquanto estamos
parados no sinal vermelho. Principalmente no Verão, a Jess costuma estar lá fora
de manhã, a beber café. Às vezes, quando a vejo ali, sinto que ela também me vê,
sinto que ela também me observa e apetece-me acenar-lhe. Mas sou demasiado acanhada.
Não costumo ver tanto o Jason, anda muitas vezes fora em trabalho. Porém, mesmo
quando eles não estão lá, penso no que andarão a fazer. Talvez hoje de manhã
tenham tirado um dia de folga, e ela esteja deitada na cama enquanto ele faz o pequeno-almoço,
ou talvez tenham ido correr os dois juntos, porque é o género de coisa que eles
fazem. (Dantes, o Tom e eu íamos correr os dois ao domingo, eu um pouco mais depressa
do que a minha passada normal, o Tom a abrandar o seu ritmo, só para podermos correr
lado a lado.) Talvez a Jess esteja lá em cima no quarto de hóspedes a pintar,
ou talvez tenham ido tomar banho juntos, as mãos dela contra os azulejos, as mãos
dele a apertarem-lhe as ancas.
Virando-me um pouco para a janela, de costas
para o resto da carruagem, abro uma das pequenas garrafas de Chenin Blanc que comprei na Whistletop
da estação de Euston. O vinho não está frio, mas vai ter de servir. Despejo
dois dedos num copo de plástico, volto a atarraxar a tampa e enfio a garrafa na
mala. Não é tão aceitável beber no comboio à segunda-feira, a não ser que tenhamos
companhia, que não tenho. Há sempre caras conhecidas nestes comboios, gente que
eu vejo todas as semanas, a irem e a virem de cá para lá. Reconheço-os como provavelmente
me reconhecem a mim. Só não sei se me vêem mesmo, no entanto, tal como eu sou. Está
uma tarde magnífica, quente, mas não demasiado, com o Sol a começar a descer preguiçosamente,
as sombras alongando-se cada vez mais, a luz tingindo de ouro as folhas das
árvores. O comboio chocalha acelerado, passando a correr pela casa do Jason e da
Jess, quase indistinta à luz do final da tarde. Às vezes, raramente, consigo vê-los
também deste lado da linha. Se não houver qualquer comboio a vir no outro sentido,
e se formos suficientemente devagar, consigo ainda apanhar um vislumbre deles lá
fora no terraço. Caso contrário, como hoje, posso sempre imaginá-los. A Jess há
de estar sentada com os pés estendidos em cima da mesa no terraço, um copo de vinho
na mão, o Jason atrás dela, de pé, com as mãos nos ombros da mulher». In
Paula Hawkins, A Rapariga no Comboio, 2015, tradução de José Leiria, Topseller,
20/20 Editora, 2015, ISBN 978-989-880-054-1.
Cortesia de Topseller/JDACT