«O mar erguia-se em paredes de água
e a ventania uivava através dos sombrios desfiladeiros. As cristas das ondas desfaziam-se
em escuma. Os relâmpagos derramavam a sua claridade e eram novamente engolidos
pela noite. O Fortune, um navio
inglês de três mastros, flutuava por entre aquelas primordiais forças da natureza
como se de um pedacinho de madeira se tratasse. A tormenta puxava-o violentamente
para cima e soprava a espuma ao longo de cada um dos lados da proa, as vagas enrolavam-se
nele de lado, abatiam-se sobre o barco e afundavam o convés sob toneladas e
toneladas de água. O navio inclinou-se, assim permanecendo por alguns terríveis
instantes. Por fim, voltou a endireitar-se, permitindo que a água gorgolejasse para
fora da amurada. Um trovão estrondeou. A tempestade precipitou o barco lá para baixo,
para a escuridão, como se quisesse empurrá-lo a pique para o fundo do mar. O comandante
Wrightson amarrara-se firmemente à roda do leme. Tentava fazer com que o barco seguisse
de frente contra as ondas, enquanto os mastros despidos iam rangendo. Os marinheiros,
com os seus rostos encharcados e lustrosos, esfalfavam-se a bombear a água para
fora.
No interior do navio, Antero Moreira
Mendonça ajoelhou-se diante do seu beliche, afundou as mãos debaixo da enxerga de
palha e pôs-se a rezar: não me deixes morrer! Não me deixes morrer, meu Deus! Ainda
não. Ainda não estou pronto. A água chapinhava em redor das suas pernas. Tanto as
meias como os calções estavam encharcados. As ondas embatiam com estrondo
contra as paredes do casco, era como se as pranchas de madeira fossem rebentar.
Antero sentia um gosto adocicado na boca. Ergueu-se e cambaleou até à escada. Dos
degraus ia pingando água. Agarrou a madeira molhada e trepou rumo ao convés. A escotilha
junto ao extremo superior da escada, empurrada de fora pela força do vento, ofereceu-lhe
resistência. Foi com toda a sua força que Antero se apoiou contra ela, tendo conseguido
abri-la pouco menos do que uma mão-travessa. Então, o vento arrancou-lhe a portinhola
da mão. Num instante a escotilha abriu-se por completo, e o temporal, frio e húmido,
veio de encontro ao seu peito. Trepou para o exterior. O vento arrastou-o. Antero
deixou-se cair sobre as mãos e os joelhos, e seguiu de gatas até junto da amurada.
Um marinheiro berrou algo, mas Antero
apenas conseguiu aperceber-se de que a sua boca se movia, já que a tempestade lhe
arrancava as palavras dos lábios. Antero abraçou a amurada. Estava tudo negro. Onde
acabava o céu? Onde começava o mar? Um relâmpago iluminou os contornos das
vagas. O coração de Antero parou por momentos. A altura dos negros monstros excedia
a dos mastros do navio! Sentiu algo que lhe irrompeu pela garganta e vomitou. O
marinheiro desatou a amarra que, por segurança, o mantinha preso a uma das bombas
e, curvado para a frente, correu na direcção de Antero. Nesse momento, uma vaga
inundou o convés. Antero deixou de conseguir ver fosse o que fosse. Ficou à mercê
da água fria do mar. Quando voltou a conseguir ver alguma coisa, os seus olhos depararam-se
com o marinheiro. Fora derrubado e arremessado contra um dos mastros. Voltou a erguer-se
a custo. Chegou junto de Antero.
Vá
para baixo!, berrou-lhe ele ao ouvido. Curvou-se e agarrou-o, tentando afastá-lo
da amurada. Antero não largou a estrutura de madeira sem oferecer alguma resistência.
Foi arrastado de volta para onde viera e obrigado a descer a escada. O
marinheiro fechou depois a escotilha sobre a cabeça dele. As suas pernas estavam
moles como massa de pão. Mais do que descer a escada, foi caindo por ela abaixo.
Foi parar no meio da água. Esta corria para trás e para a frente, de uma parte do
compartimento para a outra, consoante o lado para o qual o navio se inclinasse.
Obviamente aqueles que estavam a bombear não conseguiam dar conta do recado. Vai-se
acumulando cada vez mais água no interior do navio até irmos ao fundo, pensou. O
sabor do vomitado que sentia na boca recordou-lhe a carne em salmoura que havia
comido na noite anterior. Não pretendia morrer com aquele repugnante gosto na
boca. Foi chapinhando com os pés até junto do beliche, retirou a garrafa de vinho
do Porto do armário a um canto, tirou-lhe rolha e bebeu. Antero Moreira
Mendonça, és mesmo uma desilusão, disse em voz alta, uma desilusão de todo o tamanho».
In
Titus Muller, A Jesuíta de Lisboa, 2010, tradução de Paulo Rêgo, Casa das
Letras, 2011, ISBN 978-972-462-047-3.
Cortesia
Cletras/JDACT