segunda-feira, 14 de setembro de 2015

De Princesa a Rainha-velha. Leonor de Lencastre. Isabel Guimarães Sá. « É interessante verificar que Afonso V ao beneficiar os filhos do seu falecido irmão, tivesse sempre o cuidado de dizer que o fazia com o consentimento do príncipe seu filho»

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Uma mãe eficiente: dona Beatriz, infanta e neta do duque de Bragança
«(…) Retenhamos um aspecto fundamental da nossa biografada: o seu casamento com o herdeiro do trono era consequência de uma importância dinástica e económica que o antecedia. Quase que podemos dizer que foi o rei que casou acima e não o inverso. As relações que manterá com o marido espelham em grande parte esta relação de forças. E aqui tomamos um dado fundamental em que a historiografia sobre as rainhas reúne consensos: o poder que estas últimas detinham não era uma consequência constitucional, mas sim o efeito da sua riqueza e linhagem.

Ambições de mãe: dona Beatriz e os filhos
Vários documentos comprovam que a infanta dona Beatriz esteve atenta a tudo quanto pudesse assegurar e melhorar o futuro dos filhos na sua relação com a Coroa. Afinal, eram filhos do número dois na sucessão ao trono, e Afonso V estava longe de deter a mesma capacidade de sucessão: possuía apenas uma filha e um filho e mantinha-se viúvo, contra os nove filhos que nasceram a dona Beatriz. Era portanto uma aposta natural naquele mundo e num meio em que a sucessão dinástica detinha uma importância crucial. Após a morte do marido em Setembro de 1470, conseguiu que Afonso V abrisse um parêntese na Lei Mental para beneficiar os seus filhos varões mais novos. Passo a explicar: a Lei Mental, promulgada pelo rei Duarte I em 1434, pretendia que os bens da Coroa doados pelo rei fossem herdados apenas pelos filhos varões legítimos primogénitos. Tentava-se deste modo assegurar algum controlo régio sobre as doações de património da Coroa, multiplicando as situações em que estas poderiam voltar à posse directa do rei.
Uma das resoluções da lei era que, no caso de o rapaz mais velho falecer, não só a herança não só ficava automaticamente para o irmão a seguir, como voltava para a posse da Coroa. Dona Beatriz conseguiu logo em 1471 que Afonso V sancionasse a possibilidade de o seu filho Diogo herdar de seu irmão João, que, de facto, veio a morrer no ano seguinte. Mais uma vez, os Apontamentos históricos, já mencionados fornecem a data exacta da sua morte, até agora desconhecida: 16 de Agosto de 1472. Dona Beatriz obteve também do rei, seu primo e cunhado, os privilégios e liberdades de infantes do reino para os seus dois filhos mais velhos, João e Diogo. Tratava-se de um importante beneficio, uma vez que assegurava várias prerrogativas às terras que detinham, entre elas a de não fazer entrar corregedores do rei, passando a justiça senhorial nelas praticada a ser autónoma em relação à justiça régia. Estava-se então nas vésperas da concretização do casamento da filha mais velha do infante Fernando e dona Beatriz, dona Leonor, que a tornaria princesa, porque casada com o príncipe herdeiro João.
Mas, como vemos, dona Beatriz ia urdindo a sua teia, e esta dizia respeito a todos os seus filhos, pelo menos àqueles que iam sobrevivendo à elevada mortalidade infantil da época. Nem tão-pouco deixava de pugnar para conservar e até acrescentar o património que o ambicioso marido construíra em vida. Em jeito de sumário, retenhamos que uma sucessão de privilégios foi aumentando a importância da família do duque de Viseu e Beja. Pouco a pouco, foi-se estreitando um cerco em torno do rei e do seu filho, primeiro pelo infante Fernando, que combinou o casamento das filhas, e depois por dona Beatriz, que se encarregou de concretizar estes últimos e de consolidar a situação dinástica dos seus filhos rapazes.
É interessante verificar que Afonso V ao beneficiar os filhos do seu falecido irmão, tivesse sempre o cuidado de dizer que o fazia com o consentimento do príncipe seu filho. Se era verdade nessa época, não o sabemos, mas a disposição de João II, subido ao trono, seria tudo menos confirmar os privilégios da família dos tios de mão beijada, como o seu pai fizera. O futuro reservaria poucas ocasiões que permitissem imprudências a dona Beatriz. Ao contrário de Afonso V, que parece ter tido ao longo da vida uma singular incapacidade de dizer que não, João II estaria disposto a não fazer mais cedências do que as estritamente inevitáveis. Vários indícios comprovam que teve de facto uma visão negativa do comportamento do pai para com a grande fidalguia do reino. Eu sigo a velha ideia, patente em muitos historiadores mais antigos, de que Afonso V foi demasiado liberal com os grandes e que João II quis fortalecer o poder da Coroa, ou seja, da sua casa, logo desde o início do seu reinado. A historiografia mais recente, no entanto, tem visto esta questão sob uma perspectiva diferente; outros autores, com receio de enfrentar um discurso hegemónico, furtaram-se a esta questão». In Isabel Guimarães Sá, De Princesa a Rainha-velha, Leonor de Lencastre, colecção Rainhas de Portugal, Círculo de Leitores, 2011, ISBN 978-972-424-709-0.

Cortesia de CLeitores/JDACT