quinta-feira, 24 de setembro de 2015

A Biblioteca Perdida do Alquimista. Marcello Simoni. «Uberto endireitou-se. Ouvi falar muito de Fernando III. Dizem que é um religioso fanático, motivo pelo qual o chamam de ‘o Santo’. E que, em nome da cruzada contra os mouros»

jdact

«Ano do Senhor de 1227. Diocese de Narbonne. No seu ponto mais alto, a fachada da velha igreja paroquial era dominada por uma abertura circular pela qual já não entrava luz, nem mesmo nos dias ensolarados. Seria pretensioso defini-la como um óculo, pois tratava-se de uma cavidade moldada pelas intempéries, a órbita de uma grande caveira onde o vento vinha brincar. Através desta abertura, o olhar de uma freira solitária vagueava pelo vale, por entre a imensidão de verdes e as manchas esbranquiçadas dos rebanhos. Movia as pupilas quase com inércia, indiferente aos sinais de uma primavera precoce. Eram outras as coisas que lhe prendiam a atenção. Contemplava o perfil de uma época funesta, e permanecia totalmente absorta ouvindo o repicar dos sinos de Saint-Denis que meses antes tinham anunciado a reentrada de Luís VIII em Paris. O rei cruzado voltara cadáver, envolto numa pele de vaca. No entanto, a freira não partilhava do pensamento comum, recusava-se a encarar aquela desgraça como sendo a ameaça da Grande Ceifa. Não eram os Cavaleiros do Apocalipse que punham a sua terra a ferro e fogo, fomentavam o medo das heresias, davam voz aos falsos profetas. Tudo isso em nada dependia de Deus, mas do género humano. E em parte também dela.
Fechou as pálpebras, na tentativa de cortar a corrente deste seu raciocínio, mas a sucessão incessante de pensamentos, semelhante a uma ressaca, trouxe-lhe à memória as visões de um inferno subterrâneo onde eram os vivos e não os mortos a suportar o sofrimento. E, por momentos, sentiu-se envolvida pelas trevas de Airagne... Uma voz feminina fê-la voltar à realidade, mas, assim de repente, nem compreendera o que ela dissera. Baixou os olhos na direcção do pátio e devolveu um sorriso de gratidão à jovem irmã que a chamara. O que é?, perguntou-lhe, como se despertasse de um sonho. Descei, bona mater, disse a rapariga. Esforçava-se por parecer calma, mas a sua atitude revelava alguma preocupação. Encontrámos outro.
Bona mater, repetiu para si própria a mulher que espreitava ao óculo. Embora não gostasse de se enaltecer, não era uma freira qualquer. Fora ela quem infundira nova vida àquela velha igreja paroquial, transformando-a num refúgio para mulheres piedosas, uma beguinaria. Um sopro de alívio numa terra devastada pela guerra e, de certa maneira, também uma forma de reparar o mal feito. Encostou-se ligeiramente ao óculo, preparando-se para descer. Tendes a certeza?, quis assegurar-se. É um possesso, como os outros. Negligenciando uma certa compostura, a freira começara a explicar. Encontrámo-lo quando se abeirava do nosso poço. A monja levou a mão ao peito; no rosto, a dureza de um soldado. Tem os indícios? Sim, os indícios de Airagne. A mulher não hesitou. Pelo contrário, apressou-se a juntar-se à companheira, ao mesmo tempo que uma nova torrente de pensamentos perpassava pela sua mente. Quem sabe se o povo não teria razão, se o Apocalipse não estaria próximo! E ao descer as escadas, não se dava conta de ter fugido de um pesadelo para mergulhar num outro ainda pior. O pesadelo da realidade.

O conde de Nigredo
Soldados em marcha ao longo do Guadalquivir. Ignazio Toledo observava-os, do alto, por entre o claro-escuro do pôr-do-Sol, procurando discernir as cores das suas insígnias. Desceu do carro e tirou o capuz que o protegera durante as horas de maior calor, deixando a descoberto uns olhos astutos e uma barba de filósofo. Começou a percorrer o declive sem perder de vista as manobras das tropas. O único destino possível era uma cidadela fortificada a pouca distância de Córdova. Ali, iria encontrar o que procurava, estava certo disso, mas uma tal intuição, embora não cedesse facilmente à sugestão, inquietou-o. Era um homem racional, habituado a acreditar naquilo que podia compreender e a desconfiar de tudo o resto. Estranha atitude para um mercador de relíquias.
Uma voz distraiu-o destes pensamentos. Vejo-te preocupado. Olhou na direcção do carro. Era a voz do seu filho Uberto, que segurava as rédeas, sentado no lugar do cocheiro. Era um jovem de vinte e cinco anos, cabelo comprido preto e olhos subtis ambreados. Tudo bem. Ignazio perscrutou de novo o vale. Aqueles soldados têm as insígnias de Castela, devem estar de volta ao presídio do rei Fernando III. Temos de os seguir, quero encontrar-me com sua majestade antes que se faça noite. Nem consigo acreditar! Nunca imaginei que alguma vez iria ver o soberano. Habitua-te à ideia. Há duas gerações que a nossa família serve a casa real de Castela. Ignazio esboçou um sorriso amargo e pensou no pai, notarius do rei Afonso IX. Raramente se abandonava a essas recordações, e quando isso lhe acontecia procurava distrair-se e afastar a imagem daquele homem pálido e nervoso que passara a vida, toda a sua velhice, na escuridão de uma torre a escrevinhar em pilhas de papéis. Em breve irás perceber que tamanho privilégio comporta mais responsabilidade do que honras, comentou, suspirando.
Uberto endireitou-se. Ouvi falar muito de Fernando III. Dizem que é um religioso fanático, motivo pelo qual o chamam de o Santo. E que, em nome da cruzada contra os mouros, expande os seus feudos para sul, declarando guerra ao emir de Córdova... Ignazio calou-se, subitamente surpreendido por um ruído de cascos a galope. Virou-se para oriente e viu um cavaleiro que se aproximava à rédea solta. Willalme está de regresso, disse, fazendo um aceno na sua direcção. O cavaleiro foi ao seu encontro, parou diante do carro e desceu do cavalo, de um salto. Percorri a estrada principal e boa parte das secundárias, anunciou, limpando o rosto e sacudindo o pó dos longos cabelos louros. Depois de viver há tanto tempo em Castela, o seu sotaque francês quase desaparecera. Ninguém nos seguiu». In Marcello Simoni, A Biblioteca Perdida do Alquimista, 2012, tradução de Maria Irene Carvalho, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-089-8.

Cortesia de CAutor/JDACT