O
cerco a Lima
«(…) O Cuzco era um vale rugoso
rodeado de serras, onde o frio da altitude tornava impossível o cultivo de árvores
de fruto. Os Incas tinham erigido uma cidade portentosa naquela mesma região,
que resistira galhardamente aos embates da Conquista. Quando Almagro chegou à
dita cidade, em 1535, com a intenção
de tomar posse do que considerava seu, os palácios tinham já menos ouro do que antes,
mas conservavam o seu antigo esplendor. Ainda abundavam as tradicionais casas
de pedra, madeira e colmo, com terraço, mas os novos habitantes já tinham
introduzido a telha e começavam a construir casarões com grandes beirados e
portões. No local do palácio de Wiracocha tinham já lançado as fundações da
catedral, e, para o do palácio de Huayna Cápac, projetavam um convento. Os espanhóis
compreenderam, desde muito cedo, que os índios daquele império eram demasiado
numerosos, pelo que os métodos de conquista não passaram pelo extermínio mas pela
mestiçagem e pela dissimulação política. Tal implicava preservar, nessa altura,
traços suficientes do mundo anterior e, com isso, uma aparência de convivência
harmoniosa entre as duas civilizações. Por isso, mantiveram no Cuzco, sob o
domínio efectivo de Juan e Gonzalo Pizarro, um chefe inca simbólico, com a sua
casta governante. Se os invasores estavam a habituar-se a comer batatas, ganso
e quinoa e não tinham qualquer problema em forni… com as nativas, porque não
poderiam tolerar também, nas suas barbas, um inca numa padiola e em regime de
partilha simulada do governo com o verdadeiro poder? As aparências atenuavam os
rancores decorrentes da subordinação.
O Cuzco com que se deparou
Almagro tinha como governante formal Manco II, que os espanhóis tinham coroado com
uma coroa de lata e coberto com um manto de lantejoulas, para além de lhe terem
colocado uma espada toledana à cinta e lhe terem calçado botas com esporas de
ouro. Este inca, de tez pálida, nariz aquilino e constituição fraca e fibrosa,
deixava-se controlar desde que lhe permitissem reinar..., sem reinar! Era assim
que lhe retribuíam o seu apoio, decisivo aquando da tornada do Cuzco às hostes
de Atahualpa, e mantinham, ou julgavam manter, a docilidade de um povo que, se
tomasse consciência da sua superioridade numérica, poderia anular a Conquista.
Mas tudo era tão recente e estava tão pouco firme que o perigo espreitava a
cada esquina.
As rivalidades locais tinham sido
determinantes no êxito inicial de Pizarro. Agora, cabia aos índios jogar com as
alianças instáveis. Manco II apercebeu-se rapidamente da tensão entre Almagro e
os Pizarro e, acreditando ter encontrado naquele um bom apoio contra os
desmandos e as hostilidades quotidianas destes, tornou evidente a sua simpatia
pelo recém-chegado. Os irmãos Pizarro reagiram com novas provocações e, certa
noite, Manco II, mais previdente do que digno, procurou refúgio onde lhe
pareceu tê-lo mais seguro: sob a capa de Almagro. A cidade ficou,
portanto, dividida. Os seguidores dos Pizarro, entre os quais se contavam
índios e espanhóis, e os de Almagro, também compostos por gente de ambas as
etnias, quase chegaram a vias de facto em plena praça principal. Em Lima,
Francisco Pizarro considerou estas perturbações suficientemente graves para
interromper a indolência paternal e a urbanização da sua nova capital. Assim,
partiu no final de Maio para restabelecer a ordem no Cuzco.
Em meados de 1535, e a pós uma difícil negociação, Pizarro conseguiu convencer
Almagro a sair para explorar os seus novos domínios do Sul, ainda não
totalmente conhecidos e, sobretudo, dominados. E certo que o Cuzco era o centro
da disputa, mas nos territórios mais a sul não havia rivais. Essas terras eram
de Almagro. Manco II cedeu-lhe vários milhares de índios, incluindo o sumo-sacerdote
e temível general Villac Umu, sem o qual lhe seria impossível assegurar algumas
lealdades locais para a expedição. Francisco Pizarro não imaginava que, ao
afastar o seu inimigo íntimo, chamava,
em vez de afastar, uma ameaça também ela íntima, pois o mais certo era que os
beneficiários do afastamento temporário de Almagro, os desordeiros Juan e
Gonzalo Pizarro, não tardassem a desencadear acontecimentos sombrios para a Conquista.
Pizarro partiu para o litoral para fundar uma nova cidade, a norte de Lima, e
deixou o Cuzco entregue aos irmãos. Um elefante que caminhasse sobre as pontes
suspensas do Apurímac teria causado menos estragos que esta parelha à solta
naquela que ainda era a praça central do império». In Álvaro Vargas Llosa, A
Primeira Mestiça, 2004, tradução de Luís Coutinho, Saída de Emergência, 2013,
ISBN 978-989-637-503-4.
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