sexta-feira, 18 de setembro de 2015

O Livro de Cale. Monge Negro. Carlos Cordeiro. «Vindes transtornado e receoso! Que tempestade é essa?, perguntou Soeiro, figura forte de semblante sereno e de olhar acutilante, enquanto cravava novamente os olhos no mapa»

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Recontro em Mofatra
«(…) Entretanto, Gonçalo havia chegado à casa dos Maia, após uma desenfreada jornada desde Mofatra. O solar, imponente e de linhas rudes, repousava praticamente oculto no escuro da noite. Alumiava-o uma pequena fogueira no pátio e uma frágil claridade proveniente do interior. Fora da casa, o ambiente agitou-se com a entrada intempestiva do fidalgo, que nem a ordem de paragem, ao portão, admitiu. Das casas próximas saíram imediatamente dois homens, direitos ao cavaleiro, de lança em punho, que só pararam junto dele, em atitude ameaçadora. Deixai-me, vociferou Gonçalo, mostrando-se. Os dois homens sossegaram as armas e saudaram o fidalgo, que replicou de imediato: fechai o portão e ficai de atalaia. Anoite está violenta e todo o cuidado é pouco! Apeou-se rapidamente, confiou a montada a um lacaio e dirigiu-se ao salão da casa. Franqueou a entrada com alarde e deu com o irmão, Soeiro, sentado à mesa, embrenhado na apreciação de um pequeno mapa. Gonçalo pingava.
Vindes transtornado e receoso! Que tempestade é essa?, perguntou Soeiro, figura forte de semblante sereno e de olhar acutilante, enquanto cravava novamente os olhos no mapa. Gonçalo dirigiu-se à lareira do salão. Aproximou as mãos geladas do lume e respondeu: Já vos dou novas, irmão. Acreditai que a jornada não foi prazenteira. Se continuar com este fado, não tardareis a estar à beira da minha sepultura... O irmão pouco caso fez da sentença. Estava habituado aos desmandos de Gonçalo que, sendo mais novo, estouvado e provocador, se via com frequência em situações pouco edificantes e assaz perigosas. Apesar da sua notável envergadura, aliás comum aos Maia, era folgazão, mas implacável, brejeiro, porém contundente. De feições rudes, olhar vivo e atento, desde cedo enveredara por manifestações temerárias. A arte da peleja, sinal dos tempos, aprendera-a com primos mais velhos.
Do pai, Mendo Gonçalves, guardava a memória de um homem enérgico e jubiloso. Tal como Bernardo, nas suas primeiras duas décadas, Gonçalo era notado como licencioso e agitador. Organizava habitualmente os seus momentos como derradeiros, consumindo-os até os esgotar, por vezes, com aparato excessivo. Outrora, diria que teríeis companhias nefastas, que justificavam os vossos exageros. Acaso, agora, estais a arriscar por conta própria?, inquiriu Soeiro, entre sarcasmos. Mas hoje, enfatizou, estais mais ansioso do que é costume... Referia-se, antes, aos tempos em que Bernardo era o instigador de tais dislates, arrastando Gonçalo para aventuras desbragadas e duvidosas, ainda que, por vezes, também por si partilhadas. Contudo, nesse aspecto, Soeiro era diferente do irmão. Mais cordato, compenetrado e fleumático, planeava o quotidiano com prudência e, sobretudo, informação adequada. Não era tão alto como o irmão, mas sabia impor a sua presença. Ombreava com ele em denodo, mas defendia a diplomacia como solução para o esclarecimento de problemas. Tendo nascido cinco anos antes de Gonçalo, coubera-lhe organizar a casa após a morte do pai. Era o interlocutor privilegiado dos notáveis portucalenses e porta-voz dos seus anseios políticos». In Carlos Cordeiro, O Livro de Cale, O Monge Negro, 1060-1089, Publicações Europa-América 2010, ISBN 978-972-1-06140-8.

Cortesia de PEAmérica/JDACT