terça-feira, 22 de setembro de 2015

As Saias de Elvira e Outros Ensaios. Eduardo Lourenço. «Quer dizer, uma visão da Humanidade redentora de si mesma e guiada na sua viagem atormentada por aquele ‘instinto de luz’ de que falava Antero. Essa visão devia traduzir-se…»

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«(…) Só Camilo, em termos de paixão, compreendeu de que mistura turva era feito, é feito, o que chamamos Erotismo, em sentido familiar: no fundo dessa sombra, negrejavam dois óculos defumados; por trás deles, na parede, uma imagem de N. S. das Dores, olhava para mim com o peito trespassado de espadas. É a mesma N. S. das Dores madrinha de Amélia, a quem se confia nos momentos da melancolia dolorosa provocada pelo amor a Amaro, madrinha como Nosso Senhor é o padrinho de todas as Titis. É entre Vénus e esta Virgem das Dores que se inscreve sempre a aventura erótica dos personagens de Eça, quer sob o modo grave, quer sob o modo satírico, sacrílego, da Relíquia. Mas ao fim e ao cabo é a Melancolia, que, do fundo do espelho, ensombra as eternas núpcias sem alegria de Eros e da Morte.

O tempo de Eça e Eça e o tempo
Como sabemos, Eça de Queirós ainda entrou neste século (XX). Embora se tenha detido no seu primeiro degrau, soube que outro século começara não apenas na ordem convencional da cronologia mas de um outro tempo. Ou melhor, um tempo-outro. Já na última década da sua vida, tão abreviada como a de Antero e Oliveira Martins, tivera plenamente consciência que o seu tempo, o da plenitude dos seus sonhos, da sua utopia pessoal e até o mais intemporal da sua obra, se havia misteriosamente transformado. Não se reconhecia, ele, tão sensível à exterior fosforescência de uma sociedade que em cada manhã mudava de rosto arrastada por uma vertigem ao mesmo tempo fascinante e demoníaca, na atmosfera fin de siècle onde se respirava um ar tão diverso do da sua juventude. Sobretudo, o seu tempo parecia cansado de si mesmo e refluía, mesmo nele, para um algures que não era revivalismo de sonhos heróicos, social ou literariamente motivantes como os da sua mitologia juvenil de filho de Proudhon e do rei Artur, mas espaço de indiferença ou de declarado desdém por aquela visão do mundo que, melhor do que ninguém, encarnara na Legenda dos Séculos de Victor Hugo, sua paixão e referências jamais extintas, como dirá por ele, afectando ironia, João da Ega.
Quer dizer, uma visão da Humanidade redentora de si mesma e guiada na sua viagem atormentada por aquele instinto de luz de que falava Antero. Essa visão devia traduzir-se no plano da História e das suas lutas, pelo triunfo da justiça e a instauração de um reino de fraternidade, simbolicamente anunciado pelo cristianismo, embora o catolicismo o tivesse contaminado com a tentação do poder e da glória terrestres. Ora a religiosidade do seu fim de século, ou antes, a sua equívoca misticidade, assumia-se como evasão pura, não para passados idealizados da Humanidade como no Romantismo, embora também essa herança fosse retomada, mas para tempos, literalmente falando, fora do mundo. A voga extraordinária de toda a espécie de esoterismos, ocultismos, orientalismos, espiritualismos, espiritismos, emergia assim à superfície de um século que renovara materialmente a face da Terra, que vira os efeitos práticos do conhecimento científico moderno com os Koch, os Pasteur, os Claude Bernard no campo da medicina e da biologia, ou da tecnologia com os Goodyear, os Siemens, os Bell e os Edison, e encontrara no Positivismo o seu discurso de justificação filosófica e popular e no reconhecimento institucional de disciplinas como a química, a física, as ciências naturais, a sua consagração». In Eduardo Lourenço, As Saias de Elvira e Outros Ensaios, Gradiva, Lisboa, 2006, ISBN 989-616-151-8.

Cortesia de Gradiva/JDACT