«(…) Só Camilo, em termos de paixão, compreendeu de que mistura turva
era feito, é feito, o que chamamos Erotismo,
em sentido familiar: no fundo dessa sombra,
negrejavam dois óculos defumados; por trás deles, na parede, uma imagem de N.
S. das Dores, olhava para mim com o peito trespassado de espadas. É a mesma
N. S. das Dores madrinha de Amélia, a
quem se confia nos momentos da melancolia dolorosa provocada pelo amor a Amaro,
madrinha como Nosso Senhor é o padrinho de todas as Titis. É entre Vénus e esta
Virgem das Dores que se inscreve sempre a aventura erótica dos personagens de
Eça, quer sob o modo grave, quer sob o modo satírico, sacrílego, da Relíquia. Mas ao fim e ao
cabo é a Melancolia, que, do fundo do espelho, ensombra as eternas núpcias sem
alegria de Eros e da Morte.
O tempo de Eça e Eça e o tempo
Como sabemos, Eça de Queirós
ainda entrou neste século (XX). Embora se tenha detido no seu primeiro degrau,
soube que outro século começara não apenas na ordem convencional da cronologia
mas de um outro tempo. Ou melhor, um tempo-outro.
Já na última década da sua vida, tão abreviada como a de Antero e Oliveira Martins,
tivera plenamente consciência que o seu tempo,
o da plenitude dos seus sonhos, da sua utopia pessoal e até o mais intemporal da
sua obra, se havia misteriosamente transformado. Não se reconhecia, ele, tão sensível
à exterior fosforescência de uma sociedade que em cada manhã mudava de rosto arrastada
por uma vertigem ao mesmo tempo fascinante e demoníaca, na atmosfera fin de siècle onde se respirava um ar tão
diverso do da sua juventude. Sobretudo, o seu
tempo parecia cansado de si mesmo e refluía, mesmo nele, para um algures que não era revivalismo de sonhos
heróicos, social ou literariamente motivantes como os da sua mitologia juvenil de
filho de Proudhon e do rei Artur, mas espaço de indiferença ou de declarado
desdém por aquela visão do mundo que, melhor do que ninguém, encarnara na Legenda dos Séculos de Victor Hugo,
sua paixão e referências jamais extintas, como dirá por ele, afectando ironia, João
da Ega.
Quer dizer, uma visão da Humanidade redentora de si mesma e guiada na sua
viagem atormentada por aquele instinto de
luz de que falava Antero. Essa visão devia traduzir-se no plano da História
e das suas lutas, pelo triunfo da justiça e a instauração de um reino de fraternidade,
simbolicamente anunciado pelo cristianismo, embora o catolicismo o tivesse contaminado
com a tentação do poder e da glória terrestres. Ora a religiosidade do seu fim de século, ou antes, a sua equívoca misticidade,
assumia-se como evasão pura, não para passados
idealizados da Humanidade como no Romantismo, embora também essa herança fosse retomada,
mas para tempos, literalmente falando, fora
do mundo. A voga extraordinária de toda a espécie de esoterismos, ocultismos,
orientalismos, espiritualismos, espiritismos, emergia assim à superfície de um século
que renovara materialmente a face da Terra, que vira os efeitos práticos do conhecimento
científico moderno com os Koch, os Pasteur, os Claude Bernard no campo da medicina
e da biologia, ou da tecnologia com os Goodyear, os Siemens, os Bell e os Edison,
e encontrara no Positivismo o seu discurso de justificação filosófica e popular
e no reconhecimento institucional de disciplinas como a química, a física, as ciências
naturais, a sua consagração». In Eduardo Lourenço, As Saias de Elvira e
Outros Ensaios, Gradiva, Lisboa, 2006, ISBN 989-616-151-8.
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