«As fronteiras entre os domínios
do racional e do sobrenatural eram extremamente imprecisas na antiguidade.
Remontam ao inundo indo-ariano as primeiras tabulações a respeito da magia, ou
seja, a religião dos magos, que eram confundidos com os sacerdotes persas e
medos da religião de Zoroastro, também denominados pelos gregos e romanos de caldeus.
Conta-nos Heródoto que os magos (mágoi,
goetes) iranianos se consagravam a
práticas divinatórias, médicas e astrológicas. A tradição atribuía aos sábios
da Caldeia o dom de estabelecer relações entre os movimentos dos astros e os
fenómenos ocorrentes tanto nos céus como na terra. Na verdade, em torno dessa
verdadeira casta de entendidos nas coisas ocultas ao comum dos homens, criou-se
desde cedo uma autêntica aura de prestígio que se traduzia em veneração, a um
só tempo respeitosa e temida. Na literatura romana, os segredos da magia e da
adivinhação são sempre atribuídos aos caldeus. De facto, a casta dos magos da
Caldeia, pois de verdadeira casta se tratava, com vínculos que se pretendia
remontarem aos primórdios da civilização sumero-acadiana, arrogava-se a posse
de fórmulas e conhecimentos secretos, que exercitavam principalmente nas
práticas divinatórias e médicas, além das astrológicas. As segundas tinham
vasta aplicação nos casos de epilepsia e distúrbios da mente (endemoninhados).
Os magos eram chamados de ashipu
e tnashmashu (exorcistas)
e cultuavam como sacerdotes o deus Ea, de Eridu, e seu filho Marduk, de
Babilónia. Segundo a crença geral, os feiticeiros causavam malefícios e
concitavam os demónios contra os homens, tendo os magos a missão de
neutralizá-los com exorcismos e encantações. O culto dos mortos, de que
inúmeros livros chegaram até nós, preservados
com as múmias, tem, no Egipto antigo, a sua origem no reino da magia, que
imperava sobre a vida e sobre a morte. Havia ali duas espécies de magia: a
lícita e a ilícita. Com o seu exercício buscava-se quer o domínio das forças da
natureza, quer a concessão pelos espíritos do que desejassem. Um complexo
ritual, que incluía o uso de amuletos e encantações, era tributário de
experiências e saber acumulado e visava a protecção contra animais venenosos e
ferozes, bem como a prevenção de moléstias e calamidades. Alguns de seus
princípios constituíam o rudimento de uma verdadeira ciência.
Entre os hebreus, a magia está
documentada, por exemplo, na erecção da serpente de bronze que Iavé ordenou a
Moisés, para curar da mordedura desses répteis os castigados filhos de Israel
que a olhassem. O livro dos Números igualmente relata a actuação
do adivinho e mago Balaão, cujos poderes ocultos são requeridos por Balac, rei
de Moab, a fim de deter os avanços dos israelitas por seu território. Seja ou
não originária da Pérsia, a magia adquiriu os contornos e a substância que a
erigiram em saber e poder aos olhos dos povos num vasto âmbito, que ia do
misticismo individual e colectivo ao reino das sombras da morte, dos segredos
por detrás dos fenómenos naturais, como terramotos, eclipses, chuva, sol e
tempestades, ciclo das estações, geração e destruição de animais e plantas,
alterações climáticas e ocorrências meteorológicas. Tudo estava imerso em névoa
espessa e era permeado pelo medo.
Lucrécio reverencia Epicuro como
um deus, por haver exilado das mentes humanas os terrores que as oprimiam, desvendando
os segredos dos deuses e das coisas escondidas, mostrando que tudo era fruto da
ignorância: as fronteiras desta recuam à medida que avança o conhecimento.
O homem primitivo, ainda ignaro de sua independência e autonomia em relação à
natureza, à qual não contemplava como objecto e sim como a si mesmo no interior
de um espelho côncavo, jamais admitia, como totalmente impensável, intervir nas
leis ou fenómenos naturais. A medida, porém, que ia adquirindo a noção da sua
identidade contraposta ao mundo circunstante, foi acalentando o desejo, feito
de curiosidade e ambição de poder, de penetrar e interferir nessas leis e nesses
fenómenos. A magia surgiu com as práticas ingénuas e ocultas que pretendiam
produzir efeitos contrários ou calculados de derrogação de tais leis da natureza.
No decurso dos tempos, instituíram-se, por assim dizer, dois tipos de magia: a
branca, ou arte de
produzir deter minados efeitos aparentemente maravilhosos, mas que, observados
com atenção, se devem apenas a causas naturais: a negra, apanágio de certos indivíduos que pretendem
obter efeitos sobrenaturais graças à intervenção de espíritos, em especial
maléficos. O pressuposto originário parece ser o raciocínio elementar
segundo o qual as mesmas causas surtem efeitos idênticos, e agir sobre a parte
equivale a agir sobre o todo. Isto se comprova, entre outras coisas, pelo
achado de objectos, como o célebre fígado de Piacenza, que exibe em seus bordos
a compartimentação microcósmica do macrocosmos». In João P. Mendes, Da Magia na
Antiguidade, Revista Humanitas, volume XLV, 1993, Universidade de Coimbra.
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