sábado, 26 de setembro de 2015

Relicário. Douglas Preston e Lincoln Child. «Snow esperou pela sua vez para retirar as garrafas de oxigénio do depósito de aço inoxidável e em seguida aproximou-se da popa enquanto as prendia aos ombros. Ainda não estava habituado a este tipo de fato de mergulho pesado»

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Ossos velhos
«(…) Bons-dias..., disse D’Agosta. Na obscuridade que reinava sob a ponte, o rosto vermelhaço do tenente observava-os, de olhos piscos como um troglodita pálido a procurar esconder-se da luz. Dirija-se a mim, chefe, respondeu o brigadeiro enquanto prendia um batímetro ao pulso. O que foi que aconteceu? A captura deu para o torto. Afinal o tipo não passava de um mensageiro. Despejou a mercadoria pela borda da ponte. D’Agosta apontou com o queixo na direcção da estrutura superior. A seguir disparou sobre um polícia e deram-lhe cabo do canastro. Se conseguirmos encontrar o tijolo, podemos encerrar este caso de mer… O brigadeiro suspirou: se limparam o sebo ao gajo o que é que nós estamos aqui afazer? D’Agosta abanou a cabeça: como assim? Então vocês querem deixar um tijolo de heroína que vale seiscentos mil dólares no fundo do canal? Snow ergueu a cabeça. No meio das barras enegrecidas da ponte, podiam-se entrever as fachadas calcinadas dos prédios. Mil janelas sebentas olhavam para o rio morto. Foi uma pena o mensageiro ter sido obrigado a deitar tudo ao Humboldt Kill, ou seja à Cloaca Máxima, assim chamada por se parecer com o sistema central de esgotos da Roma Antiga. Chamavam-lhe Cloaca por causa da acumulação centenária de fezes, desperdícios tóxicos, animais mortos e diclorobenzenos. Um ramal do metro esforçava-se lá no alto, entre mil estremecimentos e guinchos. Por baixo dos seus pés, a embarcação vibrava e a superfície viscosa da água espessa parecia igualmente tremelicar, como um pudim de gelatina.
Tudo bem, malta, ouviu o brigadeiro dizer. Vamos lá molhar-nos! Snow afadigou-se a apertar o fato. Sabia que era um mergulhador de primeira qualidade. Crescera em Portsmouth, vivera praticamente ao lado do rio Piscataqua, e já tinha salvado umas quantas vidas humanas. Anos mais tarde, no Mar de Cortez caçara tubarões e mergulhara a mais de sessenta metros de profundidade. Apesar de tanta experiência anterior este mergulho não lhe inspirava grande confiança. Embora Snow nunca tivesse explorado esta zona, o grupo estava sempre a referir-se a ela. De todos os lugares infectos para se mergulhar na cidade de Nova Iorque, a Cloaca era o pior de todos: pior ainda do que o Arthur Kill, Hell Gate, ou mesmo o Canal de Gowanus. Certo dia, disseram-lhe que este fora em tempos um afluente importante do rio Hudson, que atravessava Manhattan de um lado ao outro, a sul de Sugar Hill, em Harlem. Mas séculos de desperdícios, construções desordenadas e consequente abandono tinham-no transformado numa fita estagnada e imóvel de porcaria: como se fosse um caixote de lixo líquido onde se pudesse despejar tudo o que coubesse na imaginação.
Snow esperou pela sua vez para retirar as garrafas de oxigénio do depósito de aço inoxidável e em seguida aproximou-se da popa enquanto as prendia aos ombros. Ainda não estava habituado a este tipo de fato de mergulho pesado e constritor de movimentos. Pelo canto do olho viu o brigadeiro a aproximar-se: Tudo pronto?, disse a voz calma de barítono. Acho que sim, chefe, respondeu Snow. E as lanternas para a cabeça? O brigadeiro ficou a olhar para ele. Estes prédios cortam toda a luz do dia. Vamos precisar de lanternas se quisermos ver um palmo à frente do nariz. Correcto? O brigadeiro esboçou um sorriso: não ia fazer diferença nenhuma. A Cloaca tem seis metros de profundidade. Por baixo disso, existem cerca de três a quatro metros de lodo em suspensão. Logo que as tuas barbatanas tocarem nele, este vai explodir como uma bomba de pó. Não vais conseguir ver nada para lá da máscara. E por baixo do lodo ainda há dez metros de lama. O tijolo vai estar enterrado algures, no meio dessa lama. Lá em baixo terás de usar as mãos para ver.
Olhou para Snow como se quisesse avaliá-lo e hesitou durante alguns instantes: Escuta, prosseguiu em voz baixa, isto não vai ser como aqueles mergulhos de treino que fizeste no Hudson. Só vieste connosco porque o Cooney e o Schultz ainda estão no hospital. Snow concordou. Ambos os mergulhadores tinham apanhado uma blastos, lastomicose, uma infecção fúngica que atacava os órgãos internos, enquanto procuravam por um corpo cravejado de balas no interior de uma limusina no fundo do rio North. Apesar das análises parasitológicas obrigatórias de oito em oito dias, não havia ano em que uma nova doença bizarra não viesse arruinar a saúde dos mergulhadores. Não há problema se não quiseres mergulhar desta vez, prosseguiu o brigadeiro. Podes ficar aqui, no convés, a dar uma ajuda com as cordas de segurança». In Douglas Preston e Lincoln Child, Relicário, O inferno fica debaixo da terra, tradução de João Barreiros, Saída de Emergência, 2009, ISBN 978-989-637-126-5.

Cortesia de SEmergência/JDACT