«(…) Em casa, todos foram de opinião que devia pôr as minhas roupas
europeias de lado. Shalini, toda desembaraçada, foi imediatamente buscar um magnífico
sari de seda branca, estampado com
enormes flores cor-de-rosa. As blusas dela serviam-me perfeitamente e pude
escolher com facilidade uma da mesma cor das flores. Nunca tinha usado um sari,
mas senti-me razoavelmente confortável e fiquei logo pronta para sair. No
entanto, por precaução, seguraram-me as pregas com um grande alfinete de
segurança, não me fosse suceder algum imprevisto. Pouco depois saí com Bhauji no
seu novo Oldsmobile, guiado pelo
motorista. O cenário era espectacular. O mar cortava a costa já dentada,
formando aqui e ali pequenas enseadas. Por vezes abria caminho terra adentro,
como pequenos fiordes, formando extensos backwaters
que reflectiam os altos montes rochosos que se elevavam entre a planície e a
costa. Esta paisagem dramática poderia ser um verdadeiro paraíso para os
pintores se não fosse a colossal tragédia humana que acolhia. O meu primeiro
passeio turístico na Índia acabara por ser uma visita ao maior campo de
refugiados em todo o estado de Maharashtra.
Havia passado um ano depois da divisão da Índia, que tanta miséria e infortúnio
trouxera ao povo. Depois da independência da Grã-Bretanha, o país fora dividido
para formar dois países independentes. O Paquistão ficou para os muçulmanos e a
Índia para todos os outros. Milhares de pessoas viram famílias e amigos
separados por uma barreira artificial que daria início a um grande êxodo dos
dois lados. A maior parte dos refugiados preferia vir para a Índia, visto ter
sido sempre um país secular, aceitando a igualdade de religiões. Em pouco tempo
milhares de famílias começaram a passar a fronteira para a Índia. E a corrente
continuava. Fugiam a pé, de automóvel ou até em carro de bois, apinhados com
tudo o que pudessem acarretar.
Aqui, em Kalyan, o governo tinha construído um grande número de
barracas pré- fabricadas, muito compridas, para cada uma delas poder alojar
várias famílias. Actualmente, após tão intensa tempestade, poucos eram os
tectos intactos e o campo estava num caos; muitos dos escassos valores pessoais
que estas infelizes famílias tinham trazido estavam agora perdidos. Cada família
procurava ficar reunida à volta do seu fogareiro. Centenas delas cozinhavam
assim ao ar livre ou em qualquer canto de uma tosca barraca. Escombros e lixo
viam-se por toda a parte, enquanto a miudagem, de caras sujas e roupas enxovalhadas,
corria pelo campo e brincava nas poças de lama ali à roda.
O sol ia já alto e o calor apertava quando chegámos a Kalyan. O tempo estava
muito abafado. Bhauji saiu do carro e foi a pé fazer a inspecção deste enorme
acampamento com os outros engenheiros da localidade. Eu fiquei ali sentada à
espera enquanto ia observando tudo o que me rodeava. Inesperadamente, alguém
chegou ao carro, onde me mantinha sentada, trazendo-me uma chávena de chá.
Aceitei de bom grado e agradeci o chá, que fumegava e cheirava a cardamomo. À minha
volta surgiu logo um grupo de miúdos de caras sujas que me olhavam curiosos.
Talvez por verem ali uma europeia vestida de sari! Senti-me exposta,
desconfortável e com uma grande tristeza pela imensa miséria que me rodeava. A
Índia dos meus sonhos, de palácios e templos, de cores vivas e beleza natural,
transformara-se rapidamente numa cidade destroçada e na sordidez opressiva de
um campo de refugiados destruído pelo ciclone. Senti uma dor profunda no
coração. Lembrei-me com saudade da minha terra, das verdes pastagens cortadas
por altas sebes de hortênsias azuis, do mar azuis, transparente, e das
criptomérias, que oscilam com a brisa suave. Todo aquele mundo distante,
perdido agora para mim, passou levemente pelo meu pensamento». In
Edila Gaitonde, As Maçãs Azuis. Portugal e Goa 1948 – 1961, Editorial Tágide,
F. Oriente, 2011, ISBN 978-989-95179-9-8.
Em memória de Ofélia e Álvaro José.
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