«Ao abordarmos os principais problemas que se
levantam em torno da música, na cultura grega, verificámos que existe uma longa
discussão acerca dos conceitos musicais, ditos como património helénico e
outros, que passaram a integrá-lo. Esta integração, chamada helenização, é geralmente acompanhada por
longas polémicas que se centram, no caso da música, sobre os ritmos, harmonias,
instrumentos e conceitos estéticos. Este tema ocorreu-nos como resultado
das investigações que realizámos acerca da Mousiké nas tragédias
e de posteriores estudos sobre o sentido do tema nos teóricos musicais do
período helenístico. Uma abordagem como esta da cultura grega, tem
necessariamente que pressupor como metodologia científica, a
interdisciplinariedade entre diversas áreas, como sejam, as ciências musicais,
a história, a filologia clássica, a arqueologia, a fonética e a filosofia.
Como nota prévia, devemos desde já deixar
claro que os gregos concebiam o mundo dividido em duas partes: a
Europa e a Ásia. Hecateu, um historiógrafo, fez mesmo um mapa, no qual
dividia o mundo nestas mesmas partes, e Heródoto discute essa divisão, propondo
uma outra tripartida: Europa, Ásia e Egipto, na qual a Europa tem a
mesma extensão em latitude que a Ásia. Mas o topónimo Europa, surge pela
primeira vez no Hino Homérico α Apolo, situada no norte da Grécia
por oposição ao Peloponeso. Este Hino é datado, com algumas reservas, do século
VI a. C., facto que o coloca como anterior a qualquer outro documento onde
se refere a Europa. A partir dele, dá-se um fenómeno semelhante ao conceito
de Hélade, que inicialmente estava circunscrita ao Norte e depois, foi alargada
ao peloponeso, como se pode ler na IV Nemeia de Píndaro (473 a. C.),
na qual se fala da Europa como um território que se foi alargando segundo
conceitos culturais, os quais levaram os gregos a diferenciar, por exemplo,
entre a cultura dos Persas, na peça homónima de Esquilo e a cultura grega Desta
diferenciação faz parte a música, que espelha o pensamento helénico no seu
âmago.
Entre as fontes a partir das quais podemos
conhecer a música, ressaltam as representações iconográficas em vasos e as alusões
em textos literários, além dos estados dos filósofos e dos teóricos musicais.
Um dos autores gregos que mais contribuiu para o estudo da música, e, em
concreto das inter-relações entre a cultura grega e outras culturas, foi
Plutarco. Ε entre os objectos do seu estudo figuram os instrumentos, que são
por ele caracterizados pelos materiais que os constituem, pelo som que
produzem, pelas funções que desempenham, pela integração no seu contexto
próprio, e pela impressão auditiva causada.
É deste modo que se apresenta a grande kithara
de concerto. A kithara tomou a sua forma, no tempo de Cepion, discípulo
de Terpandro. Foi designada kithara Asiática, por ser usada pelos
músicos de Lesbos que viviam perto da Ásia. Este epíteto de Asiático estava de tal forma enraizado
na cultura grega, que Estrabão afirma: … toda
a música nasceu na Ásia ou na Trácia. Estes epítetos tinham uma grande
importância no domínio da música, se considerarmos que a memória e o ouvido
estavam por detrás de quase toda a formação musical, de tal modo que era
possível referir um instrumento e associar-lhe algumas melodias. Por exemplo,
as melodias auléticas não eram executadas por todos os géneros de aulos, mas
apenas por alguns. Deste modo, cada melodia estava ligada a um instrumento especificamente,
dependendo da sua tessitura e timbre. Os epítetos tinham desde os Poemas
Homéricos um fundamento musical, na medida em que ajudavam à identificação, quanto
à origem e carácter, de melodias que se repetiam noutros contextos diferentes daqueles
de onde eram originárias. A este propósito é significativa a obra de Lord, na
qual se enuncia a teoria, de que as frases musicais assentavam em fórmulas que variavam e eram
desenvolvidas da tradição oral para a escrita. Assim, a recepção de um poema
envolvia alguma transformação mantendo, no entanto, fixo o tema.
Além da kithara, considerada um dos
intrumentos paradigmáticos da cultura grega, também teria uma origem não
helénica. A variante de lyra com braços longos, produzindo sons graves, é um
instrumento dos mais arcaicos, tendo sido Ateneu quem melhor traçou a sua
história. Os testimonia, afirmam que Terpandro teria sido o seu
inventor. No entanto, Lesky põe justificadas reservas a esta tradição antiga,
referindo que recentemente foram descobertas, na sequência de escavações
arqueológicas, pinturas micénicas no Sarcófago de Hagia Tríada, do segundo
milénio, onde já se pode ver representado o instrumento. Deste modo, e de
acordo com Lesky, Terpandro não foi o primeiro
inventor. Mas isto não significa que o uso do instrumento se continuasse a
verificar após o declínio da cultura micénica. Neste sentido, o testemunho de
Estrabão que atribui a Terpandro o aumento do número de cordas, levanta a dúvida
se teriam já os gregos conhecimento deste instrumento ou se efectuaram a sua
reinvenção. Rocha Pereira considera viável uma nova invenção por parte de Terpandro. Alguns testemunhos antigos
também atribuíam a invenção a Anacreonte». In Aires Rodeia Pereira, A Música Grega
entre a Europa e a Ásia, Revista Humanitas, volume XLIX, 1997, Universidade de
Coimbra.
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