«Ainda no meio da
vida, já estou cansado como se fosse nos confins do seu entardecer. Tenho a
cabeça branca e a alma devastada pela fúria de todos os ciclones». In António José de Almeida.
Memórias da tia Graça
«(…) Albertina olhou para o outro lado da sala, lá estava o
sobrinho, tão triste, como ele devia sofrer com tantos conflitos à sua volta,
pobre criança! Se Júlio permitisse ela tomá-lo-ia à sua guarda como um pequeno pássaro
sem ninho. Mas já iam receber Heitor. Não que ela se importasse, Júlio é que
podia não querer. Pedro, de longe, captava as movimentações sobre a sua sorte,
intuía-o da habitual cotação de menino abandonado, mas, nada deixando
transparecer, conversava com o primo Alvarito, cuja desenvoltura invejava. Eram
muito diferentes estes dois primos quase da mesma idade, com destinos de berço
tão diversos e que no entanto se entendiam: o desvalido Pedro tinha figura de
príncipe, alto e loiro; Alvarito, filho do primogénito Luís e de sua mulher
Zulmira Maldonado, de nove anos mimados, pequeno e rechonchudo, crescia em
feitio brincalhão, que a vida era uma brincadeira inconsequente dada a
indulgência dos pais que o adoravam e lhe perdoavam as fantasias rocambolescas
ditadas por fértil imaginação. Graves sensaborias tinham já sofrido, que ele
não poupava ninguém.
De uma vez, num dos numerosos jantares elegantes que Zulmira
costumava dar, houvera, entre outras sobremesas, uma mousse au chocolat, doce recentemente importado da admirável
cozinha francesa. Alvarito, que recolhera cedo como convinha a uma criança,
aparecera na casa de jantar no momento em que o criado servia a apreciada
iguaria e, com ar compungido, bichanara em voz suficiente para ser ouvido por
todos, boa noite, isso que vão comer tem fezes da mamã que a cozinheira pôs
no chocolate. Ninguém comera a mousse
au chocolat, apesar das invectivas indignadas de Zulmira, siderada, com a
alusão às suas fezes. Comera-a ele mais tarde, regaladamente. O alvo preferido das
suas partidas era o severo tio Francisco, filho do primeiro casamento do conde
e marido da tia Antoninha. Até houvera uma questão entre Luís e Francisco,
cujas relações tinham esfriado desde então.
Luís e Zulmira eram o casal réussi da família. Ele aumentara o património recebido de seu pai
(o primeiro marido de Ana, herói de Africa e construtor de fortunas) e
mantinha, estimulado pela mulher, um trem de vida luxuoso, idas frequentes a
Paris, festas magníficas frequentadas sobretudo por gente das artes e das
letras. Zulmira, Maldonado de solteira, tinha uma sede inesgotável de sucesso,
sobretudo em relação aos homens, o que provocava cenas de ciúmes no marido,
inseguro perante a sua beleza insinuante e os seus dotes poéticos. Embora também
dado a aventuras galantes, era Luís um homem responsável dos deveres familiares
e cívicos, auxiliando os parentes com a disponibilidade própria do estatuto de
primogénito. Fora ele o padrinho da neófita e dera-lhe de presente um rico broche de brilhantes.
Também lá se encontravam as duas outras filhas de Ana, as
inseparáveis Elisa e Laura, esta sem o marido, ocupado na lavoura das terras, e
aquela ainda solteira inconsolável, que continuavam trilhando o seu caminho de
diferenças: Elisa fina e elegante, Laura infantil nas suas saídas intempestivas
e pesadas. Por fim, Antoninha, enteada de Ana e seu marido Francisco de Riba
Coutinho, ele pouco comunicativo, ela doce como sempre, cada vez mais apagada e
silenciosa; tinham voltado definitivamente a viver em São Jerónimo desde a
última crise do conde, a quem Francisco amava num silêncio discreto. Como
Guilhermina dizia, maldosamente, era uma família grande que aparentemente se
dava bem.
De regresso a Coimbra, Júlio voltou à vida académica e Albertina
às lides domésticas, agravadas agora pela presença dos dois hóspedes. A casa
era espaçosa para os albergar, mas traziam eles um ritmo diferente ao
quotidiano. Heitor, obrigado a frequentar pela primeira vez o colégio, tentava
escapulir-se aos seus deveres e fazia-o com êxito, iludindo a ingenuidade
bondosa de Albertina. Conhecedor dos gostos de Júlio pela caça e pelos
desportos em geral, desafiava-o, tentador, conseguindo a pouco e pouco os seus
intentos. Terno e amável, oferecia-se para passear a pequena Maria Teresa que
crescia adorável e precoce e trazia pequenos presentes; porém, os estudos continuavam
para ele uma actividade absurda, não ligava às conversas, achando enfadonhas e
escusadas as questões que discutiam. O irmão bem tentava puxar-lhe pelos dotes
do espírito, contudo, sem êxito algum: o Júlio, vocês argumentam, argumentam e
ficam sempre na mesma. Eu acho que a
vida está para a acção, não para as palavras e para os papéis». In
Maria Luísa Beltrão, Os Impetuosos, 1994, Editorial Presença, Lisboa, 1998,
ISBN 972-23-1857-8.
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