«(…) As vozes misturadas dos
homens eram então um mar a estender ondas de palavras sobre as cabeças; ondas que
partiam de um rumor e se estendiam longas numa algazarra difusa, para logo se recolherem,
deixando no ar desperdícios de palavras, sílabas sem préstimo e desarrumadas
como coisas velhas numa estrumeira. Nunca?, disse o diabo a rir e a sorrir. Calou-se
o José e calaram-se os homens para ouvir a resposta que não deu. Dois copos de tinto,
insistiu o tentador, sorrindo. Sabes, continuou enquanto sorria, disse-me o
gigante que a conhece mais que tu, que sabe melhor e com mais certeza onde ela anda,
onde ela está. Da lonjura branca da sua aura de álcool, José parou para entender.
Sob o pó, os homens, como toupeiras, abriram os olhos pequeninos, a querer rir mas
sem saber como, a grunhir apenas. José respondeu esse gigante já mentiu de mais;
a minha mulher está onde sei que está, onde deve estar; e esse, se o vires, diz-lhe
que me apareça, que me apareça. E levantou o punho fechado bem alto e, num movimento
prolongado, bateu-o no balcão. A cadela levantou-se e saiu lentamente. E José ainda
disse ele que me apareça que eu estouro-o. Fez-se uma pausa na face dos homens e,
após esperarem o instante certo, todos ao mesmo tempo, começaram a dançar, a voar
num círculo, a rodar à volta de José. Ele, que aperras lhes distinguia os contornos
baços e a mistura das cores, recuperou a alegria no rosto e rodou e dançou e caiu
e caiu e levantou-se e dançou outra vez. Num canto, o demónio sorriu, finalmente
satisfeito de sorrir.
Este silêncio de esperar inquieta-me.
A última ovelha deitou-se junto aos corpos enrolados de outras debaixo do sobreiro
grande. Penso: os homens são ovelhas que não dormem, são ovelhas que são lobos por
dentro. O sol mantém-se lume e sol na lenta combustão do ar e da terra. Na mesma
sombra que eu, encostado ao mesmo tronco, o cajado parece uma pessoa que me olha
com dó. Diante de mim, pesada, a cadela levanta às vezes o olhar, também ela
sabendo o que vai acontecer.
Os passos solenes da cadela antecediam
os incertos de José. De tempos a tempos, parava a esperá-lo. Sob o céu, quando José
deixou a vila e entrou na estrada de areia do monte das oliveiras, a noite ficou
mais escura, negra. A melodia que os homens tinham gritado na venda do judas
entoava ainda murmurada na sua cabeça perdida. Recortado na claridade pouca da noite,
o seu vulto era o de um estranho bicho de três ou quatro patas, consoante estivesse
apoiado no cajado ou caído de mãos na terra. E assim avançava desordenadamente,
na altura em que começou a desconfiar das moitas e do mato nas valetas. E ora atacava
o mato e os fantasmas invisíveis com o cajado e acertava consigo próprio no chão;
ora se largava a fugir e sentia os pés, de repente demasiado grandes, embaraçarem-se
um no outro.
A barreira
antes do monte mostrou-lhe o sol a levantar-se dos telhados da casa dos ricos.
Como o escuro, dentro de José, o álcool tinha-se diluído lentamente na chegada da
luz. De novo, sentiu a cabeça nítida e o peso da sobriedade. Olhando o sol de frente,
José parou e juntou as certezas do que iria acontecer. Ficou. E subiu. Assim que
passou o portão, a cadela avançou mais descansada e, debaixo do tanque da roupa,
desmoronou-se. A casa de José, caiada e com barras amarelas, ficava a uns metros
da casa dos ricos, ao fundo do pátio, atrás da nora e de um jardim pequeno que a
senhora tinha gosto em que se mantivesse. José apontou o olhar à ombreira da porta
da sua casa, atravessou o jardim amarelecido, afastou as fitas e entrou. Na
noite que ainda restava no quarto, sem quebrar o silêncio que as coisas fazem a
existir, José distinguiu a mulher sobre a cama e lembrou-se do sorriso do
demónio, e lembrou-se das suas palavras. A cabeça da mulher sobre a almofada, os
cabelos da mulher sobre a almofada eram ao mesmo tempo o que conquistara e o que
lhe escapava». In José Luís Peixoto, Nenhum Olhar, 2000, Quetzal Editores, Lisboa, 2010,
ISBN 978-989-722-032-6.
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