sexta-feira, 4 de setembro de 2015

O Livro de Cale. Monge Negro. Carlos Cordeiro. «Ainda incrédulo com a mudança de atitude de Bernardo, Fernando vangloriou-lhe o acto: Haveis tomado uma atitude nobre que vos enaltece a fidalguia! Não, Fernando. Para mim, a situação não passou de um ensaio, retorquiu Bernardo…»

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Recontro em Mofatra
«(…) Condescendente, Fernando pegou numa tocha e convidou Bernardo a segui-lo. À frente, alumiando a marcha, o estalajadeiro arrastou-se para um pequeno corredor, entre paredes estreitas e lúgubres, onde o cheiro da cavalariça dava lugar ao odor de humidade. A galeria desembocava numa dependência minúscula onde, numa das paredes, estava incrustada uma portinhola. Fernando apontou para o local, abriu a passagem e, num tom solene, disse: … Siga pelos degraus interiores. O caminho não é longo. Levantai a tampa, lá em cima. Tendes o quarto preparado... Fernando não conseguiu terminar a frase. Com um estrondo grave e forte, um corpo embateu no chão e rebolou contra a parede. Meio atordoado pela queda e ainda lívido, um homem apessoado, bem constituído e ricamente vestido ficou atónito, ao olhar para as duas figuras que o encaravam. Tentou articular algumas palavras, mas soltou apenas vagos lamentos. De cima, ouviram-se imprecações que aparentemente lhe eram dirigidas.
O pobre homem tinha um ar cadavérico e mais pálido ficou quando sentiu o gélido gume da espada de Bernardo na garganta. Porém, Fernando reconhecera Gonçalo, fidalgo da casa dos Maia, homem leal e laborioso, mas suspeito conquistador de almas mulheris insaciáveis de amor. Tudo indicava que, ao sair de um aperto, o fidalgo entrara noutro ainda mais crítico. Receoso da reacção de Bernardo, Fernando suplicou: Por Deus, deixai-o ir, senhor, que é bom homem, temente a Deus e amigo do povo! Já com a carótida picada pela ponta da espada de Bernardo, Gonçalo apenas articulou: Saí do meu caminho! Deixai-me passar ou a minha vida de pouco valerá!
Apesar da tentativa, Gonçalo não colheu a condescendência de Bernardo. Os urros de assanho no piso superior percebiam-se, agora, de forma mais nítida. Na verdade, em cima, o rebuliço era excessivo e escutavam-se açoites e estaladas. Fernando insistiu, apavorado: Senhor, são feitos de alcova! Não o empeceis! Bernardo baixou a guarda lentamente. Poisou, por instantes, os olhos no colar de Gonçalo e reconheceu a insígnia dos Maia. Tal visão deixou-o estarrecido. Tentou articular uma palavra que fosse, mas a voz embargou-se-1he. Pasmado, retirou lentamente a espada e saiu da frente do homem. Gonçalo, agora liberto, esboçou um gesto de fuga, mas, ao ver de soslaio a espada do agressor, sobreveio-lhe uma recordação longínqua. Apesar de atrapalhado, levantou-se num ápice, transpôs a porta e desapareceu.
Ainda incrédulo com a mudança de atitude de Bernardo, Fernando vangloriou-lhe o acto: Haveis tomado uma atitude nobre que vos enaltece a fidalguia! Não, Fernando. Para mim, a situação não passou de um ensaio, retorquiu Bernardo, teste, que, bem-aventurado, superei, auxiliado pela minha benquista memória que, mesmo assim, se me não revela lesta e inteira, deixou, olhando para onde Gonçalo se tinha desvanecido. O sururu do piso superior havia cessado. Fernando dirigiu-se à parede e afastou uma enorme barrica de vinho, deixando antever outra pequena porta, de onde retirou uma trave que a fechava. Utilizai esta passagem, que é segura, indicou o estalajadeiro, apontando o buraco estreito agora visível, após ter puxado a ponta de uma corda que, do cimo, pendia na abertura. Tendes roupa lavada na cama e água para vos refrescardes e limpardes o sangue que vos cobre o ombro.
Antes de entrar no alçapão, Bernardo pediu ainda ao estalajadeiro que lhe preparasse uma refeição quente. Fernando ainda balbuciou algo incompreensível, mas desistiu perante o olhar do monge. Vamos lá ver o que me reservais, enfatizou Bernardo, ao ver a escura passagem. Apesar de não dispor de mais do que meia dúzia de quartos, a Estalagem de Mofatra, apresentava uma sala plena de comensais. Algumas mesas compridas, dispostas junto às vigas de madeira que sustentavam o piso superior, apesar de gastas, ainda mostravam robustez. Um estrado elevado e amplo, mas mal iluminado, logo após a entrada principal, que dominava todo o espaço e de onde era possível distinguir toda a sala, albergava uma mesa enorme, a única que estava vazia naquela ocasião. Mais abaixo, um pequeno balcão em carvalho tosco ocultava a cozinha. Largos candelabros com base redonda suportavam uma boa dezena de velas delgadas que iluminavam o piso térreo». In Carlos Cordeiro, O Livro de Cale, O Monge Negro, 1060-1089, Publicações Europa-América 2010, ISBN 978-972-1-06140-8.

Cortesia de PEAmérica/JDACT