Recontro em Mofatra
«(…) Condescendente, Fernando pegou numa tocha e convidou
Bernardo a segui-lo. À frente, alumiando a marcha, o estalajadeiro arrastou-se para
um pequeno corredor, entre paredes estreitas e lúgubres, onde o cheiro da
cavalariça dava lugar ao odor de humidade. A galeria desembocava numa
dependência minúscula onde, numa das paredes, estava incrustada uma portinhola.
Fernando apontou para o local, abriu a passagem e, num tom solene, disse: … Siga
pelos degraus interiores. O caminho não é longo. Levantai a tampa, lá em cima.
Tendes o quarto preparado... Fernando não conseguiu terminar a frase. Com um
estrondo grave e forte, um corpo embateu no chão e rebolou contra a parede.
Meio atordoado pela queda e ainda lívido, um homem apessoado, bem constituído e
ricamente vestido ficou atónito, ao olhar para as duas figuras que o encaravam.
Tentou articular algumas palavras, mas soltou apenas vagos lamentos. De cima,
ouviram-se imprecações que aparentemente lhe eram dirigidas.
O pobre homem tinha um ar cadavérico e mais pálido ficou
quando sentiu o gélido gume da espada de Bernardo na garganta. Porém, Fernando
reconhecera Gonçalo, fidalgo da casa dos Maia, homem leal e laborioso, mas
suspeito conquistador de almas mulheris insaciáveis de amor. Tudo indicava que,
ao sair de um aperto, o fidalgo entrara noutro ainda mais crítico. Receoso da
reacção de Bernardo, Fernando suplicou: Por Deus, deixai-o ir, senhor, que é
bom homem, temente a Deus e amigo do povo! Já com a carótida picada pela ponta
da espada de Bernardo, Gonçalo apenas articulou: Saí do meu caminho! Deixai-me
passar ou a minha vida de pouco valerá!
Apesar da tentativa, Gonçalo não colheu a condescendência de
Bernardo. Os urros de assanho no piso superior percebiam-se, agora, de forma
mais nítida. Na verdade, em cima, o rebuliço era excessivo e escutavam-se
açoites e estaladas. Fernando insistiu, apavorado: Senhor, são feitos de
alcova! Não o empeceis! Bernardo baixou a guarda lentamente. Poisou, por
instantes, os olhos no colar de Gonçalo e reconheceu a insígnia dos Maia. Tal
visão deixou-o estarrecido. Tentou articular uma palavra que fosse, mas a voz embargou-se-1he.
Pasmado, retirou lentamente a espada e saiu da frente do homem. Gonçalo, agora
liberto, esboçou um gesto de fuga, mas, ao ver de soslaio a espada do agressor,
sobreveio-lhe uma recordação longínqua. Apesar de atrapalhado, levantou-se num
ápice, transpôs a porta e desapareceu.
Ainda incrédulo com a mudança de atitude de Bernardo,
Fernando vangloriou-lhe o acto: Haveis tomado uma atitude nobre que vos
enaltece a fidalguia! Não, Fernando. Para mim, a situação não passou de um
ensaio, retorquiu Bernardo, teste, que, bem-aventurado, superei, auxiliado pela
minha benquista memória que, mesmo assim, se me não revela lesta e inteira, deixou,
olhando para onde Gonçalo se tinha desvanecido. O sururu do piso superior havia
cessado. Fernando dirigiu-se à parede e afastou uma enorme barrica de vinho,
deixando antever outra pequena porta, de onde retirou uma trave que a fechava. Utilizai
esta passagem, que é segura, indicou o estalajadeiro, apontando o buraco
estreito agora visível, após ter puxado a ponta de uma corda que, do cimo,
pendia na abertura. Tendes roupa lavada na cama e água para vos refrescardes e limpardes
o sangue que vos cobre o ombro.
Antes de entrar no alçapão,
Bernardo pediu ainda ao estalajadeiro que lhe preparasse uma refeição quente.
Fernando ainda balbuciou algo incompreensível, mas desistiu perante o olhar do
monge. Vamos lá ver o que me reservais, enfatizou Bernardo, ao ver a escura passagem.
Apesar de não dispor de mais do que meia dúzia de quartos, a Estalagem de
Mofatra, apresentava uma sala plena de comensais. Algumas mesas compridas,
dispostas junto às vigas de madeira que sustentavam o piso superior, apesar de gastas,
ainda mostravam robustez. Um estrado elevado e amplo, mas mal iluminado, logo
após a entrada principal, que dominava todo o espaço e de onde era possível distinguir
toda a sala, albergava uma mesa enorme, a única que estava vazia naquela
ocasião. Mais abaixo, um pequeno balcão em carvalho tosco ocultava a cozinha.
Largos candelabros com base redonda suportavam uma boa dezena de velas delgadas
que iluminavam o piso térreo». In Carlos Cordeiro, O Livro de Cale,
O Monge Negro, 1060-1089, Publicações Europa-América 2010, ISBN
978-972-1-06140-8.
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