De acordo com o original
«(…) De
outras vezes, homem de vivacidade e de expansão, da alegre folia, da extravagância
elegante. Bebe, grita, ri. Almoça com patuscos; janta festivamente; ceia com as
bellas, duas, três bellas; nunca menos d’isso. É pimpão, é intrépido, fica leve
apesar de gordo, é catita, é gingão, é
estróina. Deixa de ser dogmático, entra
pelo papel da peça e pela alegria como nós por nossa casa. Um folião. De outras,
grave, austero, pesando as syllabas, calculando as intenções.
Todo elle
reticencias. Grandes pausas, de umas que comovem o Stark na platea ao ponto de o
fazer irromper em doces lagrimas. Alto gesto, passo de tapete, phisionomia de retrato
antigo, retrato de antepassado illustre; grande sabor de dignidade, aroma de nobreza,
muito serio, muito serio. Aquillo a que o povo chama um homem de capitulo! Ainda d’outras, a facilidade moderna,
um conversador, um diseur, o tom amplo
da experiência e da sociedade, o gesto largo dos homens de mundo, mil segredos de
declamação imitando a extrema naturalidade, a mais artificial accentuação, e a mais
difficil, de quantas ha. Chegam as senhoras nos camarotes a dizer ás vezes com sinceridade
a seus maridos: Gostava que tu fosses assim! Pois eu não! É bom no theatro; mas
querias que eu fosse assim na rua Augusta? É um galã, é um centro, é um gracioso?
É
tudo isto talvez; não é talvez nada d’isto : é um actor de hoje, para as peças de
Augier, de Dumas filho, de Sardou, uma natureza de artista essencialmente moderna,
creada nas leituras de Balzac, de Dumas e de Musset: a melancholia de um philosopho,
a imaginação de um imprudente, a extravagância de um phantasista, e uma alma ardente
no fundo de tudo isto: alma de bons voos, desprendida de misérias: susceptivel de
abater as azas para seguir um capricho louco, mas sabendo elevar-se pelo
sentimento, pela aspiração para a arte, pelo culto do bello; meio Kean, meio Don Juan; excêntrico nas toilettes, talvez excêntrico na vida, mas
tendo a qualidade rarissima da gratidão, que imporia a lealdade para com os homens,
e, o que é mais, a honestidade para com as mulheres. Não a honestidade de José do
Egypto, de lhes querer fugir com o capote, mas a de as agasalhar com elle. Gomo
vão longe os que lhe foram mestres, e os que lhe serviram talvez de tentação para
seguir os destinos da vida de theatro! Vamos parecer velhos, se fallarmos de e
entretanto é preciso fallar, não ha remédio: fallemos.
Lembram-se bem d'elle? Na estatura, na sobranceria, havia o seu
quê de similhança com o heroe dos Solteirões...
Parece-me estar vendo ainda esse original actor, que, quando não estava no palco
estava no camarim: quando não estava no camarim nem no palco, estava no salão: e
quando não estava no salão, no palco, nem no camarim... passeava no Rocio a olhar
para o theatro!... Era um caracter melancólico, como que farto do espectáculo
das coisas humanas: espirito comtemplativo, pouco accessivel ás manifestações sempre
novas da arte, e havendo concentrado o seu pensamento num ponto fixo, substituir
a velha declamação de theatro, pela eschola franceza de mil oitocentos e trinta;
e que, nos últimos annos da sua existência, não se lembrou que era tempo de que
a eschola da forma singela substituisse essa declamação emphatica, plangente, cadenceada,
que fizera, como que n’uma revolução, as delicias da sua épocha, mas que as leis
do gosto tinham ainda de modificar». In Júlio César Machado, Os
Teatros de Lisboa, Ilustrações de Bordalo Pinheiro, Livraria Editora Mattos
Moreira, 1874, PN 2796 L5M25, Library Mar 1968, University of Toronto.
Cortesia de LEMMoreira/1874/Bordalo Pinheiro/JDACT