Subsídios para a compreensão do Crátilo Platónico
«Quem atenta no Crátilo, diálogo
vulgarmente assinalado à discussão da natureza da linguagem, defronta-se
com uma questão inicial e incontornável: que sentido tem, ou pode ter, o facto
de a linguagem ser aí examinada sob a perspectiva do nome! Ou
doutro modo: que significado é de atribuir à circunstância de um diálogo acerca
da justeza dos nomes, constituir o principal contributo platónico para a
análise da linguagem?
Se quiséssemos circunscrever o problema de
forma mais clara, formularíamos a seguinte pergunta: que consequências resultam para uma putativa teoria da linguagem do
facto de se dar privilégio às palavras
e, nelas, à função de nomear? É evidente que a legitimidade
das questões produzidas decorre de se admitir como postulados dois pontos que
estão muito longe de se encontrar totalmente estabelecidos. Ε por isso são elas
interrogações preliminares, espontaneamente proferidas num primeiro gesto de
espanto ou de suspeita, não ainda questões filosóficas, no sentido
rigoroso da expressão. Com efeito, perguntar pela repercussão que o primado do
nome tem sobre a linguagem no seu todo, implica pressupor, no caso do Crátilo,
duas teses particularmente discutíveis: a primeira é a de que o
texto visa ou procede, de facto, a um exame da linguagem; a segunda é a
de que convém creditar incondicionalmente o subtítulo que a tradição fixou,
confiando sem crítica que são os nomes e a sua justeza que nele se encontram
verdadeiramente em discussão.
Não recusamos taxativamente nenhuma destas
teses; não é aliás nosso intento comentá-las detalhadamente por agora.
Basta-nos vincar, desde já, o carácter problemático de que elas se revestem,
sugerindo, sem mais explicações, que talvez não seja exclusiva nem
principalmente a linguagem o que está em causa no Crátilo e que à
tese da exactidão das palavras como objecto temático do diálogo falta alguma
precisão e algum esclarecimento suplementar. Deve notar-se, entretanto, que, se
à primeira vista o duplo reparo aqui apontado condiciona a validade das
questões apresentadas, nem por isso, todavia, lhes retira necessariamente
pertinência. Desde logo porque, no plano inicial em que nos encontramos, essa pertinência
não necessita de ser provada a priori, sendo, ao contrário, a fecundidade
dos resultados obtidos que a poderá finalmente comprovar ou infirmar. No
presente estádio, o simples surgimento da questão é suficiente justificação
para si mesma; se colocamos a pergunta é, portanto, muito mais porque o próprio
texto primitivamente no-la colocou do que porque com ela almejemos a uma
resposta precisa: se a colocamos é, pois, tão-só para ver até onde ela nos
conduz.
Mas, para além disto, quaisquer que sejam as
dúvidas que se possam alimentar sobre o sentido filosófico do Crátilo,
dois factos existem que as tomam, neste ponto, completamente despiciendas. O
primeiro é o do Crátilo ser, quer queiramos ou não ver nele uma
obra sobre a linguagem, o
único texto de entre o corpus platónico
que versa objectiva e sistematicamente temas do âmbito da filosofia da
linguagem; nesta medida, a análise do que aí pertence a este domínio pode ser
sempre legitimamente feita, do mesmo modo que os resultados adquiridos nessa
análise, por limitados ou parciais que se mostrem no todo do pensamento
platónico, devem revelar fatalmente uma perspectiva sobre a linguagem, a saber,
a perspectiva que o Crátilo configura.
Por outro lado, ainda que tal análise fosse
forçada ou arbitrária, e vimo-lo que o não é, a simples circunstância do texto
nos fornecer uma imagem da palavra em que ela surge pensada sob o paradigma do
nome é já por si mais do que suficiente para nos fazer pensar também a nós.
Eis, portanto, o que legitima a interrogação acerca das consequências
filosóficas não já apenas para a linguagem e não ainda propriamente para a
filosofia, mas para o sentido mesmo do texto, dessa identificação entre palavra
e nome. Dito isto, regressemos à questão inicial. Que significa pensar a palavra sob a perspectiva do nome? Que consequências advêm desta assimilação?
De um modo geral, e sem pensar
especificamente no texto em causa, parece claro que a principal consequência é
a imediata filiação das palavras às coisas por elas nomeadas, isto é, a
preponderância da denotação sobre a conotação ou do referente sobre o sentido
da palavra; se as palavras são nomes, o seu valor está no que é nomeado:
da palavra está, assim, fora dela mesma. A linguagem não é então autónoma
relativamente à realidade que nomeia, mas, ao contrário, cumpre-se apenas na
relação que se estabelece no processo da nomeação. A heteronomia da palavra é,
deste modo, a primeira consequência da sua assimilação ao nome». In António
Pedro Mesquita, Palavras e Coisas, Subsídios para a compreensão do Crátilo
Platónico, Revista Humanitas, volume XLIX, 1997, Universidade de Coimbra.
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