Ha relâmpagos de memoria que abrem um vinco na fronte do homem. E a
velhice extemporânea de alguns o que é se não recordarem-se? In
Camilo Castelo Branco, A Enjeitada
Conforme o original
«(…) Ella era, como já
disse, uma guapa e têmpora cachopa. Forte, sadia, reforçada, de peitos altos, estatura
regular: nas faces morenas, um clarão de ingenuidade alegre, de bondade
expansiva. Na véspera e dia de Natal, quando sahiam as rondas, grupos de
rapazes e moçoilas que percorrem a povoação em danças e descantes, Joaquina, que
tomara os appellidos da mãe, era a flor do rancho, o que despertava um certo
despeito nas raparigas nascidas em Friume, porque ella tinha nascido em S.
Cosme de Gondomar. A 10 de janeiro, pela romaria de S. Gonçalo, era das mais
gentis cachopas que exhibiam as suas vestes de gala: saia de chita, jaqué de
merino, ordinariamente escuro, chinellas de verniz, lenço de seda na cabeça.
Pulando nas danças do
arraial, quando o lenço lhe descahia ao abandono, parecia ainda mais gentil,
graças ao penteado em uso entre as raparigas de Friume: duas tranças
singelamente enlaçadas na parte posterior da cabeça. Joaquina Pereira
enamorou-se de Camillo ouvindo-o discursar na loja do pai e recitar versos que
exaltavam a imaginação. Depois, a liberdade nas rondas, nos entremezes e nas corridas
de gallos ageitava occasião propicia ás confidencias, aos segredos, ás juras de
amor, que na loja de Sebastião Santos, interposto o balcão, não eram
permittidos aos dois namorados.
Camillo, que tinha ido a
Friume por acompanhar apenas a tia Rita, achou alli, quando menos o esperava, uma
posição social, postoque modesta, conveniente. Luiz Cunha Lemos, que acumulava
as funcções de secretario da camara e da administração do concelho de Ribeira
de Pena, tinha sido investido também nas de escrivão de fazenda e escrivão e
tabellião do julgado. Não parece, este Lemos, um dos felizes burocratas graúdos
dos nossos dias, que são verdadeiros cabides de empregos rendosos? Pois bem!, o
indispensável Lemos precisava de um escrevente, que certamente não era de mais,
e contratou Camillo para esse cargo, mediante casa e mesa, além, talvez, de
alguma remuneração em dinheiro. Que magnifico amanuense seria Camillo! Tinha ortographia,
prenda não vulgar em Ribeira de Pena e outras partes, incluindo as ilhas
adjacentes, mas, principalmente, dispunha de uma bella calligraphia, que a
rapidez da escripta não conseguiu estragar completamente mais tarde.
Sebastião Santos não
podia encontrar melhor genro, nem mais a seu geito. Dir-se-ia que o tendeiro de
Friume, o antigo alfaiate de Gondomar, tivera a intuição do futuro de gloria
reservado a Camillo. A certa altura impoz o casamento, tanto mais invejado quanto
a imaginação popular, fascinada pelas eminentes qualidades do sobrinho de dona
Rita, acalentára a lenda de que elle teria a receber uma grande herança. Foi
por uma tarde de agosto, a 18, de 1841
que, na egreja do Salvador de Ribeira de Pena. Camillo Ferreira Botelho
Castello Branco desposou a filha de Sebastião Martins Santos. O párocho
encommendado, Domingos José Ribeiro, lançou as bênçãos. Como testemunhas
assistiram o padre José Maria Sousa, de Pontido de Aguiar, e o genro de dona
Rita. Francisco José Ribeiro Moreira, primo, por affinidade. de Camillo. Está a
gente a ver toda a movimentação theatral d’essa tarde de agosto em Friume: Camillo, uma creança de dezeseis anos,
mentalizando a plenitude da posse legitima na contemplação da noiva, cujas
graças acirrantes, modeladas numa plástica vigorosa, a elle offuscariam nessa
hora electrizante os liames e encargos do casamento». In Alberto Pimentel, A Primeira
Mulher de Camilo, Silêncio Injustificado, PQ 9261C3Z738, Guimarães & Cª -
Editores, Lisboa, 1916.
Cortesia de GuimarãesE/JDACT