«Se a natureza formou uma bela criatura, não pode a fortuna precipitá-la
num incêndio?» In Shakespeare
«(…) Já agora, diga-se o porquê
do cuidadoso recato em que a filha de Norberto Meireles tinha os braços; não
era a grossura do pulso, nem a pujança carnosa do antebraço; era uma espessa
camada de buço, lanugem, ou cabelo, que a frenética menina cerceava desde os
quatorze anos, à tesoura, porque as amigas e parentas a aperreavam,
chamando-lhe peluda. Basta de
matéria: fica-se sabendo que não se trata de uma mulher formosa; deram-se,
porém, os traços principais de Carlota, e são esses os que, na
maioria dos casos, fascinam, apaixonam e enlouquecem o homem de trinta anos,
gasto de queimar incenso às belezas correctas, a cuja desanimação de comum
acordo se chama lindeza. Vejamo-la
espiritualmente. Carlota Ângela foi criada com descuidado mimo. Seus pais
reviam-se nela, desculpavam-lhe todas as, e fariam-na incorrigível, se a
natureza se não corrigisse a si própria. Aos quinze anos, a folgazã menina
mudou para triste; de gárrula e traquina que era, fez-se taciturna e
indolente. Maneiras de senhora, conversações com pessoas de idade, onde estavam
moças; entremeter-se em cousas domésticas, a que a não chamavam; desligar-se
das companheiras do colégio, desdenhando a frivolidade de seus passatempos: tal
foi a reforma repentina de Carlota Ângela. Alegravam-se os pais,
felicitando-se por a não terem contrariado em pequena, contra as admoestações
dos parentes, entre os quais havia um tio materno, de cuja calva ela mudava o
chinó para a cabeça de um gato maltês, ou em cujos óculos ela bafejava para
lhos embaciar. Esta vítima, no auge da sua angústia prognosticara aos pais de Carlota
grandes dissabores, consequências funestas da liberdade que davam à condição
ferina da moça.
Depois da mudança inesperada,
Norberto e Rosália, todos os dias, diziam ao homem dos óculos: Vê como se
enganou? Aí a tem agora mais ajuizada e mansa que as meninas criadas debaixo da
disciplina e da palmatória... Veremos..., redarguiu o velho advogado, veremos
quando ela tiver uma vontade oposta à vossa qual das duas é a que vence. Vontade
oposta à nossa!, replicava Norberto. Isso havia de ter que ver! Como acha o
mano que ela se possa opor à nossa vontade? Facilmente; e para não ir mais
longe, ides vós ter uma ocasião de a experimentar. Qual?, atalharam ambos. Eu
vos digo; mas, se Carlota entrar enquanto eu falo dela, fica para amanhã o que
hoje vos não disser. Carlota está no seu quarto a ler, e
não vem cá tão cedo, disse Rosália. Podes falar à vontade, Joaquim. Quando me
notastes a mudança rápida de Carlota, fiquei mais admirado que vós.
Entrei a cismar até que ponto se podia aceitar a naturalidade da transfiguração
moral, e vim a suspeitar que a causa estava na natureza, mas fora da natureza
de Carlota.
Ora, eu sei mais do mundo que vós, haveis de conceder-me isto, e vós tendes
mais boa fé que eu: fica uma cousa pela outra, e acho que a vossa é bem mais
agradável à vida que a minha. Sabeis o que me lembrou? Se Carlota estaria enamorada.
Olha que lembrança!, atalhou Rosália. Essa é das suas, doutor!, disse Norberto.
Está a sonhar..., deixe-se disso. Seria sonho; disse o doutor severamente, mas
já ágora deixem-me contar o sonho até ao fim, e guardem para o remate as
admirações. Nesta suspeita, comecei a limpar os óculos para examinar as caras
masculinas que entravam aqui, e não achei alguma duvidosa. As vossas relações
são pouquíssimas, e nessas não há alguém que possa despertar no coração de Carlota
um sentimento novo. Continuei as minhas averiguações fora de casa. Fui às
poucas casas onde vós íeis; segui todos os olhares de Carlota, e achei-os sempre
indistintos e indiferentes. Descorçoei um pouco; mas não desisti. Um dia do ano
passado, estávamos nós no Candal, e passeava eu e ela sózinhos na estrada.
Dizia-me a pequena que tinha lido umas novelas de cavalarias, de que gostara
muito, posto que não acreditasse nas histórias. Contou-me algumas passagens de Paulo
e Virginia e de Menandro e Laurentina ou os amantes extremosos, que
vós não sabeis o que é, mas lembrados estareis de me perguntardes se eram
livros de boa moral. Notei que a moça, quando me falava no amor das damas e
cavaleiros, empregava mais vivacidade do que convinha a uma menina inocente de
sentimentos amorosos. Fiz-lhe algumas perguntas com intenção de a surpreender;
mas ela jogava comigo tão habilmente, que venceria a partida, se eu não tivesse
cinquenta e cinco anos, e não tirasse da hábil escapula o mesmo que tiraria, se ela se deixasse apanhar.
Noutro dia estávamos nós sentados
no mirante, conversando em cousas que me não lembram, e vimos aparecer no alto
da estrada um cavaleiro. Olhei casualmente para Carlota, e vi-a corada, e
inquieta. Disfarcei o reparo, e vi-a erguer-se e voltar as costas para o
cavaleiro, dando alguns passos com certo ar de indiferença, e tornou logo,
girando entre os dedos uma flor que cortara. O cavaleiro passou e cortejou-me:
era meu conhecido. Esperei que ela me perguntasse quem era; nem uma palavra.
Perguntei se o conhecia, ergueu os ombros, e fez com os lábios um gesto, que
parecia dizer: não sei, nem me importa
saber. Noutro dia, fui eu ao Candal, e no alto das Regadas ouvi tropel de
cavalo, que me seguia, subindo a calçada. Escondi-me na esquina de uma
travessa, e vi passar o cavaleiro: era o mesmo da cortesia. Fui-o
seguindo de longe; e, ao chegar à colina de onde se avista o mirante, vi,
primeiro, Carlota debruçada sobre o parapeito da varanda, e, depois, o
cavaleiro parado debaixo do mirante. Credo!, exclamou Rosália,
erguendo-se branca como cera. E esteve até agora calado com isso!, disse
Norberto, erguendo-se também. Nada de
espantos!, respondeu o bacharel, sem se descompor na cadeira, onde se
refestelava, falando com a sua costumada solenidade oratória. Logo se diz quem
é o homem; mas há de aqui fazer-se o que eu aconselhar, senão desconfio muito
que minha irmã experimente mais cedo do que espera a vontade de Carlota. Escondi-me
alguns segundos, e apareci no momento em que vossa filha entregava um ramo ao
cavaleiro». In Camilo Castelo Branco (1825-1890), Carlota Ângela, 1874, Projecto
Livro Livre, Iba Mendes, livro 585, Poeteiro Editor, Wikipedia, 2014.
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