«Se a natureza formou uma bela criatura, não pode a fortuna precipitá-la
num incêndio?» In Shakespeare
«Norberto Meireles e sua mulher
dona Rosália Sampaio, ricos proprietários, moradores, em 1806, na rua das Taipas, da cidade do Porto, viam crescer prodigiosamente
os seus cabedais, e, com eles, uma filha única, tão encantadora para os pais
como a riqueza com que a iam enfeitando para seduzir o mais medrado capitalista
da terra. Tolerem-me a singeleza com que se começa a narrativa. Eu tinha à
minha disposição quatro exórdios bonitos, que escrevi em quatro tiras, e
rejeitei com desdém. Era assim o primeiro: diz-me tu, amor, que magos filtros insinuaste no coração da virgem de
olhos negros, que leda e melancólica, lagrimosa e risonha, te está enamorando
na lua, de onde lhe sorris em noites calmas de estio, na floresta, onde lhe
cicias palavras nunca ouvidas, na fonte, onde lhe murmuras a tua linguagem do
céu? Que ambrosia inebriante deste à doidinha que, tão requestada e alheada de brinquedos
pueris, se vai, só e destemida, a buscar-te, por entre mirtos e rosais, perseguindo-te
como lasciva borboleta de flor em flor, sobre alfombras de verdura, por onde
volitam lúcidos falenos?
Segundo exórdio: à viração da tarde tremulava ligeiramente a
folhagem do renque de alamos que cintavam uma pitoresca vivenda do Candal. Um
repuxo de cristalina linfa trepidava na cascata com soidoso rumor, donosa
música, ao som da qual se espertam amores em peito virgem, e adormecem mágoas
em coração atribulado. Morbidamente recostada sobre um banco de cortiça, por
onde trepava um jasmineiro em flor, via-se, como engolfada em alegrias íntimas
das que o rosto esconde ao invejar de estranhos, uma graciosíssima donzela...
etc.
Terceiro: onde vai este
gentil mancebo, tão à pressa e ofegante pela calada da noite, subindo a colina
do Candal, em cujo topo alveja uma casa, onde ele parece mandar adiante o
coração em cada suspiro que o cansaço lhe tira do peito arquejante? Que visão
alvíssima, que fada ou silfo é esse que desliza, rápido e volátil, por entre os
alamos, e vem ao peitoril do muro, como a ansiada Hero, restaurar o vigor do
extenuado Leandro?... etc.
Quarto, e último
exórdio:
vou contar-vos uma história que
verifiquei nas fiéis narrações de mais de vinte pessoas vivas. Ides ver até que
ponto os pais podem infelicitar os filhos; até que ponto a missão augusta do
segundo criador pode ser fementida e insidiosa; até que ponto o amor paternal é
amor, e de onde começa a ser desumanidade. Se alguma confiança devo ter na
justiça congenial do coração humano, espero carear graça e indulgência para uma
filha que se rebela primeiro contra um pai, depois contra o falso deus que lhe
impuseram como verdugo de mais alta e temerosa categoria, árbitro e
claviculário das sempiternas moradas do inferno...etc. Aí está o que eu
tinha escrito. Tudo rejeitei, contra a opinião de um congresso de homens de
delicado gosto, que votaram por qualquer dos quatro prelúdios, chasqueando-me a
simpleza com que escrevi o quinto, acanhado e peco como historieta sem nervo,
nem imaginação. E, portanto, desde já me desquito com os leitores se no decurso
deste romance me apodarem de insulso e desimaginoso.
Verdade,
naturalidade, e fidelidade é a minha
divisa, e sê-lo-á enquanto este globo se não reconstruir à feição do disparate
com que uns o alindam e outros o desfeiam. Quem desde já sentir azias de boca,
deixe isto, e desenfastie-se com as conservas irritantes da França, e até das
nacionais, que também as temos, curtidas em vasilhas, francesas. Embora travem
à ervilhaca, é o que temos, e o que nos dão os Watteis dos fricassés
literários, em menoscabo do clássico cozinhado de Domingos Rodrigues. Atemos o
fio, e a graça de Deus nos assista, para que a benevolência do leitor se compraza
com o alinho desafectado e lhano deste conto. A filha única de Norberto
Meireles e Rosália Sampaio chamava-se Carlota Ângela, e tinha dezessete
anos, em 1806. Não era formosa;
mas esquisitamente engraçada sim.
Norberto, filho de lavradores
transmontanos, era campesino, rústico, e desajeitado; Rosália, com quanto
procedente de progênie já cidadã desde seu avô, havia muito ainda que
desbastar, e quatro gerações não tinham adelgaçado nada a raça originaria de
Covas de Barroso. Ora, a vergôntea de troncos ou cepos tais não podia sair de
compleição tão fina e delicada, como se usa liberalmente com as heroínas dos
romances. As feições de Carlota eram secas e trigueiras; mas
a magreza não era de debilidade ou doença. O ligeiro toque de escarlate nas
faces era a transparência de sangue rico de toda a seiva dos dezessete anos.
Tinha uma bonita fronte, e abundantes cabelos pretos, que ela enfeitava sem
esmero, mas com desalinhada graça, conservando-os, até essa idade, em três
tranças, que um laço de cetim encarnado prendia na cintura em duas roscas. À
custa de importantes admoestações da mãe, Carlota reformou o penteado, em conformidade
com a moda, que era enastrar trancinhas de cabelos em dois grandes corações que
ladeavam a cabeça, desde o vértice até às orelhas, com matiz de laçinhos de
várias cores: bonita cousa, antes da restauração das troixas contemporâneas,
restauração, digo, porque as malas, no cocuruto da cabeça, começavam a decair
do gosto em 1806.
O que fazia engraçadíssima Carlota
eram as espessas sobrancelhas, que formavam apenas um crescente das duas
arcadas ciliares: tão imperceptível era a cisura que as estremava na base do
nariz. Bem sabem que olhos costumam ser os que reinam sob tão magnífico dossel:
grandes, e negros, entre longas pestanas que, ao mais ligeiro languir das
pálpebras, se ajustavam num amortecer de tanta volúpia, que mais não podia ser,
sem feitiçaria! Ainda não sei descrever narizes, e por narizes comecei a
pintar. O de Carlota era irregular, talvez, ao contrário dos narizes de
passaporte: era um nariz adunco, longo de mais para aquele rosto; mas esta
incongruência, impressionando aos que a viam pela primeira vez, à segunda, não
havia que desdenhar-lhe. Singular e desusada era a boca. Cada comissura ou
canto dos lábios terminava em dois vincos, um subindo, outro descendo, mas tão
pronunciados, que pareciam um permanente riso sardónico, um não sei quê que
fazia desconfiar as pessoas menos habituadas à sua convivência. Carlota era alta e gentil. Não se afectava
para ser garbosa, que lhe sobejava graça e donaire
nos naturais meneios. O braço era incorrecto, fornido de mais em carnes, e de
pele trigueira; a mão longa e magra; e o pé proporcional à corpulenta haste». In Camilo
Castelo Branco (1825-1890), Carlota Ângela, 1874, Projecto Livro Livre, Iba
Mendes, livro 585, Poeteiro Editor, Wikipedia, 2014.
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