terça-feira, 27 de outubro de 2015

Obra de Eugénio de Andrade. 25. Antologia Breve. Eugénio de Andrade. «Foi para ti que criei as rosas. Foi para ti que lhes dei perfume. Para ti rasguei ribeiros e dei às romãs a cor do lume. Foi para ti que pus no céu a lua e o verde mais verde nos pinhais»

Cortesia de wikipedia e jdact

«O vago, o aéreo desta matéria poética faz impressão. E não é que tal vacuidade exclua rigor: antes o vocabulário de Eugénio de Andrade, a sua sintaxe, a sóbria margem do seu metaforismo são instrumentos de expressão ávida de justeza. Mas porque os estados de alma e espírito captados aqui são de um grau excepcionalmente elevado em língua portuguesa». In Vitorino Nemésio

Poética
«O acto poético é o empenho total do ser para a sua revelação. Este fogo de Conhecimento, que é também fogo de amor, em que o poeta se exalta e consome, é a sua moral. E não há outra. Nesse mergulho do homem nas suas águas mais silenciadas o que vem à tona é tanto uma singularidade como uma pluralidade. Mas, curiosamente, o espírito humano atenta mais facilmente nas diferenças que nas semelhanças, esquecendo-se, e é Goethe quem o lembra, que o particular e o universal coincidem, e assim a palavra do poeta, tão fiel ao homem, acaba por ser palavra, de escândalo no seio do próprio homem. Na verdade, ele nega onde outros afirmam, desoculta o que outros escondem, ousa amar o que outros nem sequer são capazes de imaginar. Palavra de aflição mesmo quando luminosa, de desejo apesar de serena, rumorosa até quando nos diz o silêncio, pois esse ser sedento de ser, que é poeta, tem a nostalgia da unidade, e o que procura, é uma reconciliação,  uma suprema harmonia entre luz e sombra, presença e ausência, plenitude e carência.
Essa revelação do poeta, e dos outros com ele, essa descida ao coração da alma, de que Heraclito encontrou a fórmula, essa coragem de mostrar o que achou no caminho, e nunca é fácil, nem alegre, nem irresponsável revelar o que se encontrou ou sonhou nas galerias da alma, é o que chamarei agora dignidade do poeta, e com ele a do homem. Porque é sempre de dignidade que se trata quando alguém dá a ver o que viu, por mais fascinante ou intolerável que seja o achado. O futuro do homem é o homem, estarmos de acordo. Mas o homem do nosso futuro não nos interessa desfigurado. Este animal triste que nos habita há milhares de anos, mas o homem do nosso futuro tão longe de conhecer, é o fruto de uma desfiguração, acção de uma cultura mais interessante em ocultar ao homem o seu rosto que em trazê-lo, belo e tenebroso, à luz limpa do dia. É contra a ausência do homem no homem que a palavra do poeta se insurge, é contra esta amputação no corpo vivo da vida que o poeta se revela. E se ousa cantar no suplício é porque não quer morrer sem se olhar nos seus próprios olhos, e reconhecer-se, e detestar-se, ou amar-se, se for caso disso, no que não creio. De Homero a S. João da Cruz, de Virgílio a Alexandre Blok, de Li Bay a William Blake, de Bashô a Kavafis, a ambição maior do fazer poético foi sempre a mesma: Ecce Homo, parece dizer cada poema. Eis o homem, eis o seu efémero rosto feito de milhares de rostos, todos eles  esplendidamente respirando na terra, nenhum superior a outro, separados por mil e uma diferenças, unidos por mil e uma coisas comuns, semelhantes e distintos, parecidos todos e contudo cada um deles único, solitário, desamparado. É a tal rosto que cada poeta está religado. A sua rebeldia é em nome dessa fidelidade. Fidelidade ao homem e à sua lúcida esperança de sê-lo inteiramente; fidelidade à terra onde mergulha as raízes mais fundas; fidelidade à palavra que no homem é capaz da verdade última do sangue, que é também verdade da alma.

Canção
«Tinha um cravo no meu balcão;
veio um rapaz e pediu-mo
- mãe, dou-lho ou não?

Sentada, bordava um lenço de mão;
veio um rapaz e pediu-mo
- mãe, dou-lho ou não?

Dei um cravo e dei um lenço,
só não dei o coração;
mas se o rapaz mo pedir
- mãe, dou-lho ou não?»

Canção Infantil
«Era um amieiro.
Depois uma azenha.
E junto
um ribeiro.

Tudo tão parado.
Que devia fazer? 
Meti tudo no bolso
para os não perder.

Não canto porque sonho.
Canto porque és real.
Canto o teu olhar maduro,
o teu sorriso puro,
a tua graça animal.

Canto porque sou homem. 
Se não cantasse seria
o mesmo bicho sadio
embriagado na alegria
da tua vinha sem vinho.

Canto porque o amor apetece. 
Porque o feno amadurece
nos teus braços deslumbrados. 
Porque o meu corpo estremece
por vê-los nus e suados.

Foi para ti que criei as rosas.
Foi para ti que lhes dei perfume.
Para ti rasguei ribeiros
e dei às romãs a cor do lume.

Foi para ti que pus no céu a lua
e o verde mais verde nos pinhais. 
Foi para ti que deitei no chão
um corpo aberto como os animais».
Poemas de Eugénio de Andrade, in ‘Antologia Breve

In Eugénio de Andrade, Antologia Breve, Obra de Eugénio de Andrade nº 25, Fundação Eugénio de Andrade.

Cortesia de FEAndrade/JDACT