«Firmemente embrulhada numa
gabardina de plástico cor-de-rosa, a caixa dos documentos seguia aconchegada na
proa do motoscafo. Comprimida num assento
próximo, Luce Adams observava pela janela da cabina as cúpulas de São Marcos, erguendo-se
através de uma chuva fina e oblíqua. No lugar a seu lado, uma mulher mais
velha, com um chapéu de feltro Borsalino,
cinzento-pombo, ressonava, a cabeça oscilando a cada ondulação. Um jovem seguia
sentado à proa, remexendo na enorme lente de uma máquina fotográfica. Quando o motoscafo atracava no Molo, o barqueiro falou
rapidamente em italiano, apontando para a praça, onde centenas de bancos vazios
estavam preparados para uma celebração. Scusa,
signora. O jovem entrou na cabina e inclinou-se para tocar no ombro da mulher
de meia-idade. Esta deu um salto e puxou a pala do chapéu para trás, procurando
ver quem lhe incomodara o sono. O barqueiro quer o pagamento.
Esfregou o polegar e o indicador,
voltando o olhar para Luce, inclinada para recuperar a caixa que viajava junto dos
seus pés. Olhando a chuva lá fora, Luce abriu o saco de viagem, colocou a caixa
cuidadosamente lá dentro e apertou a fivela. A mulher mais velha saiu da cabina
e deu ao barqueiro as suas liras e este, sorrindo e gesticulando, começou a levar
as malas para o cais. Assim que as mulheres entraram na Piazzetta, onde um gato
perseguia pombos ao longo das pedras, o Sol ergueu-se a leste, iluminando o céu,
coberto de nuvens de chuva para lá de San Giorgio Maggiore, de um cor-de-rosa lamacento.
Detiveram-se a observar o mar trémulo, como bandeiras cinzentas e verdes por baixo
das igrejas e dos palazzos medievais.
A chuva continuava a cair, e do Lido, lá ao longe, chegava o ruído desmaiado e queixoso
das ondas. Ao longo da Piazzetta, Luce reparou no jovem fotógrafo apontando a máquina
à bacia de São Marcos. Virou-se e viu meia dúzia de barquinhos que saíam do
nevoeiro, deslizando como baratas-d’água: dentro destes esquifes ligeiros, remadores
usando camisolas sem mangas debruçavam-se sobre os remos. Por aqui!, chamou Lee
Pronski, e Luce seguiu a companheira ao longo da praça a que Napoleão chamara, um
dia, a maior sala de visitas da Europa. Luce caminhava ligeiramente inclinada para
a frente, empurrando o carro atulhado de bagagem.
Após alguns minutos a descer ruas
secundárias, Lee deteve-se junto de uma pequena ponte veneziana e espreitou
pela janela de um alfarrabista. Tinha a porta aberta, embora ainda fosse cedo para
Veneza e os vaporetti que chapinhavam
ao longo do canal parecessem bastante vazios. Com um grito de excitação, Lee
desapareceu no seu interior. Arrastando o carro da bagagem atrás de si, Luce
procurou ver o que lhe reclamara o interesse. A montra da loja estava enfeitada
com um cartaz da regata, proclamando Vogalonga,
Venezia 14 maggio. Abaixo do cartaz, ao longo de uma pilha de livros antigos
em italiano, cujos títulos ela não compreendia, estavam dispostos vários
relicários. Junto dos livros, encontrava-se uma série de estatuetas minúsculas.
Olhou mais de perto. A Vénus de Willendorf, Não havia possibilidade
de confundir a imensa barriga inchada, protuberante sobre uma minúscula púbis, ou
o rosto sem feições escondido sob um carrapito pontiagudo. Porém, nunca vira a
feia figura com dois rostos bicudos ao lado da Vénus. De dentro da loja, ouviu chamar
o seu nome. Parou o carro junto da porta e entrou, exactamente no momento em
que a empregada explicava a Lee que aquelas figuras tinham milhares de anos. Bem,
na verdade, não. São apenas cópias de artefactos do Paleolítico. Lee pegou no ícone
de duas cabeças e lambeu-o, provocando uma troca de olhares perplexos entre
Luce e a empregada. Puro calcário, confirmou Lee. Outra deusa da fertilidade, suspirou
Luce. São muito mais do que isso! Lee pagou à empregada. Toma, Luce. Gostava
que ficasses com ela. Estás a ver as faixas onduladas ao longo do peito? Os
chaveirões indicam os seus poderes metafísicos. A sua mãe sabe muito, notou a empregada,
sorrindo para Luce. Ela não é minha mãe,
sentia Luce vontade de responder. A minha
mãe morreu. Enfiou o presente de Lee na enorme mochila e prosseguiram através
das ruas estreitas.
No
Hotel Flora, o paquete cumprimentou-as com um sorriso simpático, detendo o
olhar em Luce e na sua camisola ensopada. Um bocadinho de mau tempo nunca fez mal
a ninguém. Lee apontou para o terraço, onde um empregado colocava nas mesas taças
de croissants. Luce, porque não tratas
de mudar essas roupas molhadas e depois vens ter comigo para tomar o pequeno-almoço?
Não tenho fome, murmurou Luce. Que disseste? Acho que vou para a cama. Luce
baixou a cabeça e começou a subir as escadas atrás do paquete, agora duas vezes
mais curvada ao peso da sua mala de viagem. Percebo. Bem, dorme todo o dia, se quiseres,
gritou Lee enquanto ela se afastava. Deixo instruções na recepção acerca do
local de encontro para o jantar. Luce dirigiu à amante da mãe um aceno quase imperceptível».
In
Susan Swan, Casanova Revisitado, 2005, tradução de Fernanda Semedo, Editorial
Estampa, Lisboa, 2007, ISBN 978-972-332-345-0.
Cortesia
de EEstampa/JDACT