domingo, 4 de outubro de 2015

Casanova Revisitado. Susan Swan. «Parou o carro junto da porta e entrou, exactamente no momento em que a empregada explicava a Lee que aquelas figuras tinham milhares de anos. Bem, na verdade, não. São apenas cópias de artefactos do Paleolítico»

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«Firmemente embrulhada numa gabardina de plástico cor-de-rosa, a caixa dos documentos seguia aconchegada na proa do motoscafo. Comprimida num assento próximo, Luce Adams observava pela janela da cabina as cúpulas de São Marcos, erguendo-se através de uma chuva fina e oblíqua. No lugar a seu lado, uma mulher mais velha, com um chapéu de feltro Borsalino, cinzento-pombo, ressonava, a cabeça oscilando a cada ondulação. Um jovem seguia sentado à proa, remexendo na enorme lente de uma máquina fotográfica. Quando o motoscafo atracava no Molo, o barqueiro falou rapidamente em italiano, apontando para a praça, onde centenas de bancos vazios estavam preparados para uma celebração. Scusa, signora. O jovem entrou na cabina e inclinou-se para tocar no ombro da mulher de meia-idade. Esta deu um salto e puxou a pala do chapéu para trás, procurando ver quem lhe incomodara o sono. O barqueiro quer o pagamento.
Esfregou o polegar e o indicador, voltando o olhar para Luce, inclinada para recuperar a caixa que viajava junto dos seus pés. Olhando a chuva lá fora, Luce abriu o saco de viagem, colocou a caixa cuidadosamente lá dentro e apertou a fivela. A mulher mais velha saiu da cabina e deu ao barqueiro as suas liras e este, sorrindo e gesticulando, começou a levar as malas para o cais. Assim que as mulheres entraram na Piazzetta, onde um gato perseguia pombos ao longo das pedras, o Sol ergueu-se a leste, iluminando o céu, coberto de nuvens de chuva para lá de San Giorgio Maggiore, de um cor-de-rosa lamacento. Detiveram-se a observar o mar trémulo, como bandeiras cinzentas e verdes por baixo das igrejas e dos palazzos medievais. A chuva continuava a cair, e do Lido, lá ao longe, chegava o ruído desmaiado e queixoso das ondas. Ao longo da Piazzetta, Luce reparou no jovem fotógrafo apontando a máquina à bacia de São Marcos. Virou-se e viu meia dúzia de barquinhos que saíam do nevoeiro, deslizando como baratas-d’água: dentro destes esquifes ligeiros, remadores usando camisolas sem mangas debruçavam-se sobre os remos. Por aqui!, chamou Lee Pronski, e Luce seguiu a companheira ao longo da praça a que Napoleão chamara, um dia, a maior sala de visitas da Europa. Luce caminhava ligeiramente inclinada para a frente, empurrando o carro atulhado de bagagem.
Após alguns minutos a descer ruas secundárias, Lee deteve-se junto de uma pequena ponte veneziana e espreitou pela janela de um alfarrabista. Tinha a porta aberta, embora ainda fosse cedo para Veneza e os vaporetti que chapinhavam ao longo do canal parecessem bastante vazios. Com um grito de excitação, Lee desapareceu no seu interior. Arrastando o carro da bagagem atrás de si, Luce procurou ver o que lhe reclamara o interesse. A montra da loja estava enfeitada com um cartaz da regata, proclamando Vogalonga, Venezia 14 maggio. Abaixo do cartaz, ao longo de uma pilha de livros antigos em italiano, cujos títulos ela não compreendia, estavam dispostos vários relicários. Junto dos livros, encontrava-se uma série de estatuetas minúsculas.
Olhou mais de perto. A Vénus de Willendorf, Não havia possibilidade de confundir a imensa barriga inchada, protuberante sobre uma minúscula púbis, ou o rosto sem feições escondido sob um carrapito pontiagudo. Porém, nunca vira a feia figura com dois rostos bicudos ao lado da Vénus. De dentro da loja, ouviu chamar o seu nome. Parou o carro junto da porta e entrou, exactamente no momento em que a empregada explicava a Lee que aquelas figuras tinham milhares de anos. Bem, na verdade, não. São apenas cópias de artefactos do Paleolítico. Lee pegou no ícone de duas cabeças e lambeu-o, provocando uma troca de olhares perplexos entre Luce e a empregada. Puro calcário, confirmou Lee. Outra deusa da fertilidade, suspirou Luce. São muito mais do que isso! Lee pagou à empregada. Toma, Luce. Gostava que ficasses com ela. Estás a ver as faixas onduladas ao longo do peito? Os chaveirões indicam os seus poderes metafísicos. A sua mãe sabe muito, notou a empregada, sorrindo para Luce. Ela não é minha mãe, sentia Luce vontade de responder. A minha mãe morreu. Enfiou o presente de Lee na enorme mochila e prosseguiram através das ruas estreitas.
No Hotel Flora, o paquete cumprimentou-as com um sorriso simpático, detendo o olhar em Luce e na sua camisola ensopada. Um bocadinho de mau tempo nunca fez mal a ninguém. Lee apontou para o terraço, onde um empregado colocava nas mesas taças de croissants. Luce, porque não tratas de mudar essas roupas molhadas e depois vens ter comigo para tomar o pequeno-almoço? Não tenho fome, murmurou Luce. Que disseste? Acho que vou para a cama. Luce baixou a cabeça e começou a subir as escadas atrás do paquete, agora duas vezes mais curvada ao peso da sua mala de viagem. Percebo. Bem, dorme todo o dia, se quiseres, gritou Lee enquanto ela se afastava. Deixo instruções na recepção acerca do local de encontro para o jantar. Luce dirigiu à amante da mãe um aceno quase imperceptível». In Susan Swan, Casanova Revisitado, 2005, tradução de Fernanda Semedo, Editorial Estampa, Lisboa, 2007, ISBN 978-972-332-345-0.

Cortesia de EEstampa/JDACT