«(…) Como os discos voadores; ou podia
ser que não existissem espíritos esvoaçantes, ou que, mesmo existindo, estivessem
num mundo completamente fora do nosso alcance, o mundo para além da morte para onde
íamos todos, e podia ser que as nuvens de orações e a graça dos milagres fossem
forças tão naturais como as das chuvas e ventos. Alguma coisa terá que mudar
isto, pensava. E continuava a sacudir almofadas, a manter o mundo. O marido sofria
de insónias, principalmente quando se aproximava o fim do mês e os trabalhos de
fecho de contas, muita responsabilidade, dizia, muita, muita, e se me engano, em
cinquenta escudos que sejam, terei que os pôr do meu bolso, e sei lá que dúvidas
irão nascer na cabeça do chefe, dos patrões, eles são capazes de desconfiar de tudo,
até da sombra deles, quem não tem a consciência tranquila é assim, eles lá sabem
o que os remói, cá para mim é o medo, o medo, e à conta do medo nunca se sabe do
que são capazes, quem sabe se não iriam denunciar, se não denunciaram já um empregado
à Pide por enganos de cinquenta escudos ou menos, podem logo pensar que é insubordinação
ou subversão política. Bárbara ouvia, pensava que o marido exagerava, mas logo via
a sombra do medo à volta dele, não há palavras para enxotar este medo, concluía,
arrumava a cozinha, deitava-se. Na noite de 24 de Abril de 1974 andava ele para cá e para lá na casa,
matutando e resmungando estes pensamentos. Sentava-se numa poltrona, cochilava um
pouco, acordava em sobressalto, punha o rádio para se entreter, para ter uma
companhia na noite, uma voz amiga, como dizia o locutor e ele encolhia os ombros
mas aceitava, no meio do escuro, da solidão e do medo qualquer voz é amiga. Foi
assim que ouviu o comunicado. Ou que não ouviu, o começo. Sobressaltou-se: um golpe
do exército? O que foi que disseram? Aproximou-se do rádio, baixou o som, não fosse
o diabo tecê-las, pôs-se à escuta com o ouvido quase encostado ao aparelho. Com
o nervoso parecia-lhe que o locutor gaguejava, era o ouvido dele que gaguejava,
se assim se pode dizer: as forças armadas estão a tomar conta da situação, rádios
e aeroporto ocupados, pede-se calma à população, que se mantenham em suas casas
e aguardem. Bárbara, Bárbara, ofegou ele junto à cama, não porque a casa fosse grande
e ele tivesse corrido muito da sala até ali, mas a emoção, outro medo, outra esperança,
diferentes do habitual, atabalhoava-lhe a respiração. Bárbara estremunhou e nesse
entre cá e lá sonhou-pensou que finalmente chegava o apaixonado fogoso que lhe tinham
anunciado nos livros. A paixão ardente sacudia-a. Mas os sacões continuaram, acorda,
acorda Bárbara, dizia o marido, houve uma revolta do exército, mas eles não dizem
se é da direita se é da esquerda, imagina que são aqueles doidos mais à direita
do Marcelo, os generais velhos que têm andando por aí a conspirar e a suspirar
pelos tempos do Salazar. Bárbara acordou. Nada ouviu, só silêncio. Mas sentiu.
Sentiu o salto de alegria que se erguia em toda a cidade. Os homens, os soldados
e os capitães tinham deixado as mortes e as sombras de onde só se ouviam cochichos,
tinham deixado o tal mundo oculto onde os homens buscavam uma liberdade incerta
só para si, tinham saído para a luz, tinham transformado a guerra, as rapaziadas,
as arruaças, numa decisão, numa revolta, enfim. Sorriu: já não era a esperança,
era a certeza. Obrigada, Virgem, por este mundo mais suave e luminoso.
Saltou da cama, começou a vestir-se, vamos para a rua, vamos ver Não, disse o marido,
eles recomendam-nos que fiquemos em casa, e nem sabemos do que se trata, prà rua
como, imagina que isto é golpe dos extremistas e eles se lembram de prender todos
os que apanharem na rua. Bárbara continuava a vestir-se, se quiserem prender-nos
podem vir cá a casa. Para isso era preciso um propósito, uma denúncia, a polícia
não tem nada contra nós, aqui nunca se lembrará de vir, mas os que andam na rua,
os que caem sob o olhar de qualquer horda de fanáticos estarão em grave perigo,
é a isso que se chama execuções sumárias». In Maria Isabel Barreno, As Vésperas
Esquecidas, Editorial Caminho, Lisboa, 1999, ISBN 972-211-248-1.
Cortesia ECaminho/JDACT