Os Filhos da Luz. Paris, 21 de
Janeiro de 1793
«(…) O carro parou,
finalmente, no meio de um espaço amplo e vazio que rodeava o cadafalso. Sim,
amplo e vazio, mas não desprotegido. Estava rodeado por canhões e pessoas
portando as mais diferentes armas. Piques
(lança antiga), lanças, mosquetes... O condenado desceu do carro. Totalmente
enfeitado de branco, levava nas mãos um livrinho que Karl tentou em vão
identificar e que acabou achando que fosse um missal, um livro de salmos ou
talvez um Novo Testamento. Assim que o réu pisou no chão, três dos carrascos,
daqueles carrascos que se vestiam tentando esconder a sua origem burguesa,
rodearam-no e fizeram o gesto de lhe tirar a casaca. Com uma dignidade que
quase se poderia tocar como se fosse alguma coisa sólida, o homem fez um gesto
para afastá-los e se livrou ele mesmo da peça de roupa. Por um momento, os
carrascos pareceram totalmente desconcertados. Parecia óbvio que não estavam
acostumados à semelhante demonstração de dignidade, principalmente de aprumo,
por parte de alguém a quem iriam separar a cabeça do corpo dentro de alguns
minutos. No entanto, a atitude deles durou apenas um instante. De maneira
imediata, como se impelidos por uma mola, aproximaram-se do réu e tentaram
segurá-lo pelos pulsos. Karl não pôde escutar o que o condenado respondeu, mas
captou sem dúvida a firmeza, não empertigada mas natural, com que jogou o corpo
para trás para impedir que os carrascos fizessem aquilo com ele. O grande
filho-da-pu… não se deixa amarrar... Karl escutou uma velha colérica a seu lado
resmungar. Se fosse por mim, não iriam colocar a corda propriamente nas mãos. Mas
além daquela mulher, que talvez não tivesse tantos anos quanto as infinitas
rugas que sulcavam seu rosto aparentavam, ninguém disse nada. Ninguém a não ser
os carrascos, que tinham começado a se agitar como se impelidos pelo ventinho que
soprava na praça. De repente, um deles levou a mão à boca como se fosse uma trombeta
e gritou algo que Karl não chegou a entender. Dois soldados que usavam o gorro
frígio vermelho se apressaram em atender o seu chamamento.
Foi então que os olhos
de Karl se detiveram, de forma casual, no terceiro sacerdote, aquele que
parecia profundamente triste. Pela primeira vez reparou que, quase com toda a
certeza, não era francês. Não, ele não era. Seus traços e suas feições indicavam
alguém de origem nórdica. Poderia se tratar de um alemão, de um holandês, inclusive
de um inglês. Em todo caso, não era uma circunstância tão relevante. O significativo
era que ele tinha-se inclinado respeitosamente sobre o condenado e se dirigia a
ele num tom que, pelos gestos, poderia ser qualificado de submisso, até de suplicante.
Devem ter trocado apenas duas ou três frases, mas foram suficientes para que o
réu elevasse os olhos para o céu, sussurrasse alguma coisa e estendesse as
mãos. Fez isso justo no momento em que os soldados chegavam perto dele. Ele não
poderia garantir, mas Karl teve a impressão de que um dos carrascos amarrava o
réu com uma expressão de triunfo insolente, como se fosse a consumação de um
longo processo iniciado talvez muitos anos antes. Como se pretendessem
sublinhar aquele gesto pleno de significado, os doze tamborileiros localizados
ao lado do cadafalso começaram a tocar os seus instrumentos com mais energia e
vontade do que arte.
Quando o réu começou a
subir a escadinha que levava até à guilhotina, Karl percebeu que os degraus
eram inclinados demais. Conteve nessa hora a respiração desejando que o
condenado não escorregasse, caísse ou tropeçasse naquela subida sinistra para a
morte. Se não aconteceu nada disso, talvez se deva ao facto de que o terceiro
sacerdote, o que não parecia francês, agarrou-o pelo braço com a intenção de ajudá-lo.
No entanto, aquela colaboração piedosa durou apenas o tempo de subida. Quando
os dois atingiram a plataforma sobre a qual a guilhotina repousava, o réu se soltou
com um gesto seguro. Depois, com passos inusitadamente firmes, cruzou o espaço
que havia entre o fim da escada e a guilhotina. Fez isso com tanta calma, com tanta
segurança, com tanta serenidade que qualquer pessoa teria dito que ele passeava
por um jardim desfrutando do bom tempo. Achava-se a ponto de alcançar a lâmina,
quando parou e olhou para os tamborileiros. À distância em que Karl se
encontrava não lhe permitiu captar a carga exacta que o condenado colocou
naquela expressão, mas o certo é que as mãos deles ficaram suspensas no ar sem
permitir que as baquetas sequer roçassem a pele dos instrumentos.
Morro inocente de todos os crimes de que me acusam. disse o réu
com uma voz sossegada, clara e suficientemente forte para que o escutassem com
clareza mais além da praça. Perdoo os autores de minha morte, e rogo a Deus
para que o sangue que vocês estão prestes a derramar não caia nunca sobre a
França. Nem uma palavra, nem um grito, nem um silvo, nem um assobio
repercutiram depois que o condenado pronunciou aquelas últimas frases. Por um
instante pareceu que o mundo, aquele mundo extraordinariamente convulso, tinha
parado, que a terra tinha deixado de girar, que o Sol se fixara no firmamento.
Então, uma mão, que parecia saída do nada, cravou-se no antebraço daquele homem
vestido de branco e o puxou para a guilhotina. Não houve nenhuma resistência. O
réu parecia reconciliado com seu destino como poucos teriam estado. Documente,
quase com mansidão, permitiu que dois dos carrascos, que continuavam com os
chapéus na cabeça, estendessem-no sob a lâmina. A execução durou alguns
instantes mas, ao contrário do que Karl tinha temido, a cabeça não saltou até o
chão, mas caiu na cesta. Talvez, pensou, a pequenez da lâmina tenha evitado
aquela profanação extra». In César Vidal, O Crime dos Illuminati, 1958,
tradução de António Borges, Relume Dumará, Ediouro Publicações S.A., 2006, ISBN
857-316-6491-3.
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