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Que tentativa patética de revanche verbal. Fiz uma rápida reverência à madame e saí para dar de cara com uma
noite um tanto sombria, graças à neblina
industrial causada pela Nova Era. Era só olhar para o oeste e ver o brilho
escarlate provocado pelo crescimento das fábricas nos subúrbios de Paris, sem
dúvida o prenúncio do surgimento de uma época ainda mais mecanizada. Um
lanterneiro estava perto da porta à espera de clientes. Eu realmente estava com
sorte. A sua aparência era um pouco obscura por causa da capa e do capuz que
vestia, mas, com certeza, era mais escuro que um europeu: marroquino talvez,
disposto a fazer um trabalho baixo típico de imigrantes. Ele reverenciou
levemente e revelou o seu sotaque árabe. Monsieur,
tens a aparência de um homem de sorte. E estou prestes a me sair melhor ainda.
Quero contratar os seus serviços para me guiar até ao meu apartamento e,
depois, ao endereço de uma donzela. Dois francos te satisfazem? Três, se você
me afastar das poças de lama. Como é maravilhoso ser o ganhador da noite. Contratar
um guia era fundamental já que a Revolução havia se dedicado a tudo com fervor,
excepto limpeza e reparos das ruas. Os esgotos estavam entupidos, só metade das
lanternas públicas era acesa, e os buracos cresciam cada vez mais. E também não
ajudava o facto de o novo governo ter renomeado mais de mil ruas com os nomes
de heróis revolucionários e todos ficavam constantemente perdido na cidade. Por
isso, meu guia indicava o caminho carregando uma lanterna que ficava pendurada num
cajado de duas mãos. A madeira do bastão era trabalhada à mão. As laterais
tinham fissuras que davam mais firmeza e o pólo que segurava a lanterna tinha o
formato de uma cabeça de serpente. A boca do réptil segurava a argola de
sustentação da lanterna. Era quase certo afirmar que se tratava de uma obra de
arte vinda da terra natal do guia. Fui ao meu apartamento primeiro. Precisava
guardar a maior parte dos ganhos da noite. Sabia muito bem que não era seguro
levar todas as minhas riquezas para a alcova de uma prostituta e, especialmente
sabendo do interesse de todos, também resolvi esconder o medalhão. Demorei
alguns minutos para decidir onde guardá-lo. Resolvido o impasse, retornei às
ruas escuras de Paris e segui o caminho para a casa de Minette. Mesmo que a
cidade ainda fosse gloriosa por seu tamanho e esplendor, ela podia ser
comparada a uma mulher de certa idade: era bonita à distância, mas um desastre
de perto. Casarões haviam sido saqueados. O palácio de Tuileries estava
interditado e vazio, com as suas janelas lembrando órbitas cegas. Mosteiros e
igrejas foram arruinados e trancafiados,
e ninguém parecia ter aplicado sequer uma camada de tinta em toda a cidade
desde a Queda da Bastilha. A
Revolução foi um desastre económico, menos para generais e políticos. Poucos
franceses ousavam reclamar abertamente; afinal de contas, governos sempre
encontram maneiras de justificar os seus erros. O próprio Bonaparte, até então
um oficial de artilharia pouco conhecido, fez sua grande jogada no último
levante revolucionário e garantiu a sua ascensão. Passamos pelos escombros da
desmantelada Bastilha. Desde a
sua tomada, vinte e cinco mil pessoas haviam sido executadas pelo Terror e dez
vezes mais conseguiram escapar. Cinquenta e sete novas prisões foram
construídas para suprir o debilitado sistema penitenciário. Sem qualquer senso
de ironia, o lugar passou a ser chamado de Fonte
da Regeneração: com uma grandiosa estátua da deusa Isis que, quando accionada,
lançava dois jactos de água partindo de seus seios. De longe, podia-se ver
os contornos de Notre Dame, agora renomeada Templo
da Razão, sabidamente construída sobre o templo romano dedicado à mesma
deusa egípcia. Um recado do destino sobre o que me aconteceria? Duvido muito,
dificilmente percebíamos o que nos esperava naquele tempo. Quando paguei o
lanterneiro nem percebi que ele havia ficado um pouco mais que o usual em
frente ao apartamento, depois que eu entrei. Acompanhado por rangidos e um
constante cheiro de urina seca, subi a escadaria de madeira até ao quarto de
Minette. O seu apartamento ficava no desvalorizado terceiro andar, logo abaixo
do sótão, onde moravam serventes e artistas. Pela altitude pude ter ideia do
desempenho medíocre de seu negócio, sem dúvida alguma prejudicado pela economia
revolucionária tanto quanto a dos fabricantes de perucas e outros adornos.
Minette tinha acendido apenas uma vela, cuja luz era reflectida pela bacia de
cobre que ela usou para lavar as suas coxas. Ela estava vestida apenas com uma
camisa branca com laços no pescoço. Claramente um convite a uma exploração mais
minuciosa em breve. Ela veio receber-me com um beijo com gosto delicado de
vinho e licor. Você trouxe meu presente? Puxei-a para perto e aproximei minha
cintura. Você já pode senti-lo agora. Não. Ela recuou e colocou a mão no
meu peito. Aqui, perto do seu coração». In William Dietrich, As Pirâmides de
Napoleão, 2007, Grandes Narrativas, nº 490, Editorial Presença, 2011, ISBN
978-972-234-450-0.
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