Ha relâmpagos de memoria que abrem um vinco na fronte do homem. E a
velhice extemporânea de alguns o que é se não recordarem-se? In
Camilo Castelo Branco, A Enjeitada
Conforme o original
«(…) Camillo voltou ao
Porto, como se combinara. Não lhe davam noticias de Friume, da mulher nem da
filha, porque Sebastião Santos julgou que desse modo estimularia o amor do
genro ao estudo. Desatados novamente todos os laços de família, por imprevidência
do sogro, Camillo, feitos no liceu os exames preparatórios, matriculou-se no
1.º Anno da Escola Medica e na aula de chimica da Academia Polytechnica em
outubro de 1843. Vivia como estudante
pobre num esguio terceiro andar da rua Escura, rua que por este facto e
por um romance de António Coelho Lousada ficou duplamente celebre. Na
vida bohemia do Porto, colleccionando namoros colhidos nas trapeiras da rua
do Souto e outras alfurjas, privado de ver a mulher e a filha por imposição
autoritária do sogro, foi uma creança ás soltas, passou por todas as loucuras
próprias da sua idade.
Elle mesmo o confessa,
dizendo: Eu que descera das penedias
transmontanas, perfumadas das essências das mattas altas, vestidas do rosiclér
das auroras, da purpura vespertina dos crepúsculos, de moitas de rosmaninhos, e
resvalara á sargeta da rua Escura… Em 1847,
Joaquina Pereira adoecêra de cambras.
O pai não avisou Camillo. A pobre rapariga, cuja dedicação, fortalecida pelo
amor da filhinha, talvez tivesse sido capaz de conter a mocidade de Camillo se
Sebastião Santos os deixasse permanecer juntos, conheceu que morria e pediu os
sacramentos. A 25 de setembro d’aquelle anno (1847) fallecia. No dia
27 era sepultada como pobre.
As carpideiras, vizinhas
que pranteavam officiosamente, acocoradas numa attitude de ceremonia oriental, ululariam
clamores fúnebres em redor do cadáver da mal-casada, até que o abbade José
António Rodrigues, de sotaina e sobrepeliz, seguido pelos quatro portadores do
esquife parochial e acompanhado pelo mozinho com a caldeira de agua benta, viria
encommendar o corpo. A pobreza do acompanhamento teve alguma compensação na missa
de corpo presente, que foi cantada. Mas faltaram no funeral aquellas lagrimas,
que não são espremidas pela convenção das carpideiras, antes nascem do luto de
almas saudosas. Poucos mezes depois morria a filhinha de Joaquina Pereira. Assim
desappareceu rapidamente a primeira família constituida por Camillo. Pode
dizer-se que elle foi marido e pai sem conhecer os encantos da vida caseira,
porque o não souberam conduzir a essa felicidade, talvez a maior da vida humana.
Sebastião Santos sahiu
de Friume, passados anos, e, sempre aventuroso na ambição, estabeleceu uma
padaria em S. Cosme ou no Porto, não sei bem. Quando Camillo, já ligado a dona
Anna Plácido, vivia na rua do Almada, d’aquella cidade, em um prédio fronteiro
ao collegio Podestá, uma irmã de Joaquina Pereira, mocetona de
lindas cores e guapo talhe, ia algumas vezes visitar o cunhado. Anna Plácido
não gostava desta visita; disse-o uma vez a um parente de Camillo.
revelando-lhe as suas apprehensões (… informando-me de que seu pae recebia ás
vezes uma cunhada de capote e lenço, de cujo nome não me lembro e que ele
requestava ou de que não desgostava, mas que vivia no Porto, bem como o sogro,
que era padeiro; carta do conselheiro António Azevedo Castello Branco ao
visconde de S. Miguel de Seide, que a incluiu no desvairado protesto contra a suposta
filha de Camilo, etc., etc…).
A família da noiva
Vão passados dezassete anos
desde a publicação dos Amores de
Camilo, e as novas investigações agora realizadas, cujo resultado não alterou
fundamentalmente a narrativa que deixo transcrita, vieram proporcionar-me
óptimo ensejo de completá-la com exactas e seguras informações acerca da família
a que dona Joaquina Pereira França pertenceu. Mais ainda: Parentes
seus, felizmente ainda vivos e residentes no Porto, permitiram-me conhecer a sua versão sobre o primeiro casamento de Camilo
e os factos que se lhe sucederam, versão com que nem sempre concordo, mas
que vou reproduzir e comentarei sem malignidade. Facilmente se compreenderá a razão
por que me antecipo a dizer que esta família prosperou em condições de vida e
fortuna, devidas a casamentos vantajosos. Posto isto. evoquemos genealógicamente
os ascendentes da linda Quininha, dona Joaquina Pereira França. Seu pai,
Sebastião Martins Santos, era filho legítimo de José Martins Santos e de Helena
Vieira. Nasceu em Fânzeres (seis quilómetros a nordeste da cidade do Porto), freguesia
do concelho de Gondomar, em 10 de janeiro de 1810. Exercia o ofício de alfaiate quando casou com Maria Pereira
França, nascida na freguesia de S. Cosme (oito quilómetros a noroeste da cidade
do Porto), daquelle mesmo concelho de Gondomar, no ano de 1806, filha legitima de Manuel Pinto Castro e Maria Pereira França».
In
Alberto Pimentel, A Primeira Mulher de Camilo, Silêncio Injustificado, PQ
9261C3Z738, Guimarães & Cª - Editores, Lisboa, 1916.
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