«Se a natureza formou uma bela criatura, não pode a fortuna precipitá-la
num incêndio?» In Shakespeare
«(…) Ela deu fé de mim, e
sumiu-se; e ele seguiu a estrada, depois que me viu. Carlota recebeu-me com a
certeza de que eu era suficientemente cego para a não ter visto: não deu o
menor indício de susto. Convidei-a, como sempre, a passear no jardim, e
disse-lhe: quando houver alguma novidade
na tua vida, hás de contar-ma, menina. Se ela te parecer tão agradável, que a
queiras só para ti, não cuides que lhe diminuis o valor, dizendo-ma. O
coração de teu tio há-de sentir o bem do que for bom para o teu. Ora,
conversemos: diz-me lá, Carlota, se sentes alguma inclinação que não sentias há
um ano, quando os meus óculos e o meu chinó eram o teu regalo. Eu não, meu
tio..., sinto o que sentia, respondeu ela; mas a inocência protestou contra a
mentira, mostrando-se no rosto: corou e gaguejou de um modo que me fez pena e
contentamento. Quando assim se cora, o
coração está puro. Para acudir à vossa impaciência, dir-vos-ei, em
resumo, que obriguei suavemente Carlota a confessar-me que amava Francisco
Salter Mendonça. Já sabeis quem é. Eu não!, disse Rosália. E
voltando-se para o marido: E tu? Conheço de vista, respondeu Norberto, é um
militar, creio eu... Francisco Salter Mendonça. Continuou o doutor Joaquim António
Sampaio, sorvendo uma pitada pela venta direita, e comprimindo a outra com o
dedo indicador da mão esquerda, é um tenente da brigada real de marinha, é natural
de Lisboa, e está aqui há dois anos a bordo do brigue Audaz. É um
moço que vive do seu soldo, e está por aí relacionado com os rapazes nobres da cidade.
É o que posso informar acerca de Mendonça.
Agora vou responder à pergunta de
Norberto. Admirou-se de eu estar calado com isto? Calei-me, porque
receava muito que alguma imprudência vossa irritasse o amor de Carlota.
Calei-me, esperando que Mendonça fosse chamado a Lisboa, e nos deixasse o campo
livre para despersuadirmos Carlota. Ainda assim, fiz tenção de vos avisar, logo
que julgasse necessário empregar medidas prontas. Eu sei que o rapaz tenciona vir
pedir-vos Carlota, e sei também que em poder de um meu colega está um
requerimento dela para ser tirada por justiça no caso de que negueis o vosso
consentimento. Santo nome de Deus!, valha-me nossa Senhora!, exclamou, com as
mãos na cabeça, Rosália, enquanto seu marido resfolegava arquejante, passeando aceleradamente
na sala. Não comecem a fazer doidices!, tornou o doutor. Se gritam, se põem fogo
de mais ao púcaro, entorna-se tudo. Aqui há de fazer-se o que eu disser; mas
mudemos de conversa, que aí vem Carlota.
«Os tigres são
menos sanhudos contra o homem que o próprio homem». In Fócion (Instrução a Aristias.)
Quais fossem os conselhos do
ornamento dos auditórios portuenses, teremos ocasião de avaliá-lo
oportunamente. Oito dias depois de planizada a conspiração contra os amores
reservados de Carlota Ângela, foi procurado Norberto Meireles pelo tenente de
marinha. Francisco Salter Mendonça era um rapaz da boa sociedade de Lisboa, um
dos mais distintos alunos do colégio de marinha, reformado pelo inteligente ministro
Martinho Melo Castro. Tinha dotes corporais que o distinguiam, e virtudes que
os seus amigos avaliavam como raras. Amava com verdade Carlota Ângela, posto
que, no princípio, o ser ela filha única de um abastado comerciante encarecesse
mais o galanteio. Sentiu, depois, que o seu amor se purgara da ignomínia do
cálculo, até preferir que fosse pobre Carlota, para que, pobre, se igualasse a
ele. Longo tempo a cortejara sem revelar-lhe as intenções honestas do namoro, esperando
que fosse ela a que o autorizasse a pedi-la a seus pais. Certeza tinha ele de
que lha negavam, porque então, como hoje, um noivo era pesado na balança do
negociante rico, e o contrapeso do coração não fazia oscilar o fiel. Pedi-la
sem predispor o auxílio da lei invocado por Carlota, nunca Mendonça quisera até
ao momento em que ela prometeu fugir de casa, se seu pai não consentisse.
Traçado o plano, Mendonça, como
dissemos, procurou Norberto Meireles, e foi urbanamente recebido. Disse o
motivo da sua visita, e não divisou na fisionomia do ricaço o menor sinal de
espanto, nem sequer surpresa. Acabou de falar, e ouviu, com estranho júbilo, a
seguinte resposta: se minha filha é contente com o marido que se lhe oferece,
eu não me oponho a que ela seja sua esposa. Ela que o ama, é que v. s.ª é digno
dela. Espero, atalhou Mendonça, merecer a v. s.ª o conceito que mereci à sr.ª Carlota.
Norberto não soube responder convenientemente a isto, porque dissera parte do
que o doutor lhe ensinara nas poucas palavras com que embriagou o radioso genro,
e, receoso de que lhe esquecesse o resto, continuou: fique v. s.ª na certeza de
que a vontade de minha filha é a minha; tenho, porém, a pedir-lhe um favor que
v. s.ª não recusará ao pai de Carlota. Oh!, senhor!, que me pedirá v. s.ª, que
eu não receba como ordens da pessoa que prezo desde já como pai?! Minha filha
faz anos de hoje a um mês, e eu muito desejava que ela festejasse na minha
companhia os seus dezessete anos, ainda solteira. Pois não, sr. Meireles! Exija
v. s.ª de mim todos os sacrifícios que se podem humanamente fazer, que eu nunca
pagarei o regozijo deste momento decisivo para a felicidade de toda a minha
vida. E v. s.ª, prosseguiu o fiel repetidor do bacharel, contentíssimo de não
ter trocado uma só palavra, apesar das interrupções do interlocutor, poderá, se
assim lhe aprouver, honrar com a sua presença os anos de Carlota, que se festejam,
há dezesseis anos, na minha quinta do Candal». In Camilo Castelo Branco
(1825-1890), Carlota Ângela, 1874, Projecto Livro Livre, Iba Mendes, livro 585,
Poeteiro Editor, Wikipedia, 2014.
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