Texto Crítico do Manuscrito. Livro Dois
«(…) Agora vou falar de
certa mulher que chegou perto de por amor dela Amidieu romper o voto de
castidade e ser posto a ponto de perder-se. Como está contido no começo deste
livro, havia no país de Soubezmayne, dentro da extensão de seus limites, um
santo eremita que tinha uma capela dedicada a São João na sua ermida em Byes.
Era ele, esse eremita, o mais santo dos homens: era um velho de dorso arqueado e
cabelos brancos, e nunca se barbeava, de modo que os fios do cabelo e da barba
cobriam-lhe quase todo o corpo. Nunca ninguém o ouviu dizer uma só palavra excepto
em oração: por nove anos guardara uma pedra na boca até aprender a ficar calado
e em silêncio, a qual pedra pode ser vista e venerada hoje entre as relíquias
da capela; e, por conta da santidade desse homem, muita gente de muitas
províncias longe e perto vinha até Byes em romaria. De Malemort à vila de Byes
não são mais que oito ou nove léguas, e a estrada é boa e plana, e assim os
nobres romeiros que iam a Byes ver e visitar o eremita tinham por costume já há
longo tempo demorar-se em Malemort alguns dias. No Verão daquele ano a senhora
de Danvil passou por Malemort a caminho da ermida, e com ela outras quatro
mulheres também casadas, e Roger de Giac acolheu-a muito bem e acomodou-a com
todo o conforto, a ela e a às suas acompanhantes; ali ficaram uma semana
inteira, pois aonde iam levavam tanta alegria que sir Roger não queria deixar
que seguissem caminho. Mas é bem verdade que ninguém deve fazer romaria por
diversão nem para atender a delírios, prazeres, nem deleites carnais, mas, se
querem fazê-la, que a façam com o coração e a mente inteiramente voltados para
o propósito maior de servir a Deus. Pois os que vão em romaria a algum lugar por
amor de torpes prazeres mais do que por devoção ao lugar aonde vão e fingem que
o seu propósito é o serviço de Deus, essa romaria não tem valor nem mérito
algum, pois o que fazem é troçar e escarnecer de Deus e de Nossa Senhora e
profanar o santuário que visitam.
Ora, a senhora de Anvil não
era fiel em seu casamento e, para ter melhor ocasião de encontrar o amante, deu
a entender ao marido que queria pagar uma promessa que fizera de visitar o
ermitão de São João de Byes; e o marido, sem ver nisso maldade alguma, e não
querendo contrariá-la, consentiu que fosse a Byes ou aonde quisesse. Assim, ela
mais o amante puseram dia certo para se encontrarem em Byes, onde pudessem
entregar-se à sua torpe linguagem e comunicação e a seus afazeres juntos em vez
de dizer preces a Deus nem fazer penitência alguma durante a romaria. Bem
podemos supor que fagueiro séquito de demónios acompanhava essa senhora nessa
romaria, pois era muito dada ao pecado, não sozinha, ela como com ela, todas as
suas companheiras também. E se algum de vós me perguntar se eram elas belas,
devo dizer, para não mentir, que eram sim, e que dentre todas a mais bela era Marguerite
Reynespagne, que tinha um marido naquela ocasião que se chamava naquela
ocasião Nicholas Bursegaunt. Bem, no dia em que essas mulheres chegaram com
muita festa a Malemort, Roger Amidieu esteve fora o dia todo na floresta com o seu
irmão Thibert e assim não soube que tinham chegado. Retornando a casa, eles
dois desceram e apearam dos cavalos e cada qual foi para seu lado, um para cá,
outro para lá; Thibert foi levar os cavalos ao estábulo e Roger, que estava com
muita sede, foi beber de uma fonte que havia ali intramuros.
Indo para lá, ouviu
cantar uma voz tão doce e melodiosa que outra coisa não supôs senão que era a
voz de um anjo, e esgueirou-se até à fonte o mais oculto que pôde por trás das
folhagens. Assim que vislumbrou a fonte viu ali quatro mulheres, todas elas desconhecidas,
e no meio delas a mais bela mulher que jamais vira em dias de sua vida, que lhe
pareceu mais viçosa que rosa de verão e mais clara que luz do dia: era ela que
cantava tão melodiosamente. Ali ficou bem quieto, tanto pela beleza da mulher
como para ouvir-lhe a doce voz canora, e escondeu-se o melhor que pôde entre os
arbustos a fim de não ser percebido daquelas mulheres, e esqueceu até mesmo a
grande sede que sentia. Ela continuou a cantar tão melodiosamente que ele ali
enlevado não lembrava do mundo coisa alguma, mas apenas de estar ouvindo e
vendo aquela mulher, e nem sabia se era dia ou se era noite, nem se estava
desperto ou sonhando. Aí vieram-lhe correndo dois de seus cães com muita festa,
e ele sobressaltou-se como quem desperta bruscamente, e então sentiu a sede renovar-se
e, sem mais demora, saiu dentre os arbustos e chegou-se à fonte e tomou a
vasilha que pendia ali e bebeu um pouco d’água». In Alan
Dorsey Stevenson, O Manuscrito Alfield, A Folha de Hera, Jazzseen, Julho
de 2012, Vitória Secretaria de Estado da Cultura do Espírito Santo, Biblioteca
Pública do Espírito Santo, 2011.
Cortesia de
Jazzseen/JDACT