Este livro não aspira a ser mais que uma leve conversação com o leitor
sobre assuntos camilianos e, fundamentalmente, ainda um preito de veneração e
saudade que eu venho render à memoria do imortal Torturado de Seide. In
Alberto Pimentel, Trafaria, Maio de 1921.
«(…) Na famosa eleição
da Povoa, em 1892, o conde de Móser,
apesar de velho e adoentado, foi ali espontaneamente para que não me faltassem
os votos de alguns pescadores seus protegidos. Tinha o dropp da Foz o aspecto da ossatura de um prédio de dois ou três
andares, e estava situado entre o edifício do tempo do infante Miguel e a muralha
da Meia-Laranja, correspondendo justamente á pancada da barra, segundo a linguagem dos homens do mar. No
pavimento superior foram montados aparelhos de sauvetage, entre os quais um cabo de vai-vem, que não sei ao certo
se funcionava pelo sistema dos canhões porta-amarras ou por qualquer outro de
arremêsso. A giria popular deu a este dropp
da Foz a designação irónica de hidrópico,
certamente pelo volume da construção e por alguma semelhança fonética com o
vocábulo inglês nas silabas finais daquele nosso adjectivo. No mesmo ano de 1854 em que saíram as Folhas caídas, de Camilo, apareceu,
logo a seguir, a Vespa do Parnaso,
que é de Faustino Xavier Novais. Uma passagem da Vespa refere se à alcunha picaresca
do dropp: Já foi á Foz vêr o
hidroppico. Outra passagem faz-lhe alusão por meio de uma crua perifrase;
chama-lhe a asneira de pau. Vem
a propósito dizer qual o facto, então recente, que determinou a publicação das Folhas caídas, da Vespa do Parnaso, e ainda de outros
opúsculos satíricos.
Em torno das Folhas
caídas, de Garrett fizera-se em 1853, ano da sua aparição, uma atmosfera de critica ruidosa. O
poeta tinha a esse tempo 54 anos de idade e declarava-se apaixonado por uma Ignota
Dea. E o caso é que os seus versos, bons como todos os seus, revelavam
um inesperado regresso ao lirismo ardente da mocidade. Conta Gomes Amorim
que, entrando Alexandre Herculano na livraria Bertrand, e vendo umas
provas tipográficas sobre o balcão, as lera e, durante a leitura, arregalara os
olhos com manifesta surpresa. De quem
é isto?, perguntou. Não há senão um homem em Portugal capaz de fazer tais
versos! São do Garrett? O velho
Francisco Bertrand respondeu-lhe: São, sim, senhor. Que lhe parece? Penso que se Camões fizesse versos de amor,
na idade em que está Garrett, não era capaz de o igualar. São belissimos!
Aquele diabo não póde com o talento que Deus lhe deu! Parece que tem vinte
anos! Este livro fará com que se lhe perdoe tudo… O certo é que as duas
primeiras edições das Folhas caídas,
de Garrett, foram avidamente consumidas no mercado.
Voaram, levadas de bons e de maus
ventos. Como acontece sempre que um livro produz sensação, sucedeu-se ao de
Garrett uma série de publicações, algumas das quais lhe parodiavam apenas o
titulo ou também o texto e outras eram consequência daquelas, embora não
tivessem relação com o texto nem com o titulo. Assim, Camilo abriu o caminho
com as Folhas caídas, apanhadas na lama, que compreendem
sátiras portuenses, estranhas ao livro de Garrett. É do mesmo género a Vespa do Parnaso, de Faustino, por um mordomo das almas de Campanhã que vem
de colarinhos tezos meter a fala no bucho ao seu Juiz, autor das Folhas caídas.
Outro opúsculo, também em verso, assinado com o pseudónimo de Amaro Mendes Gaveta,
e intitulado As folhas caídas apanhadas a
dente e pescadas no Porto (1855), tem alguma intenção de paródia,
até no texto. Sei que ainda há outro opúsculo, Folhas e cascas, mas não o vi nunca. O dropp da Foz esteve de pé durante annos. Quando começou a
apodrecer, desmontaram-no, e os barrotes ainda aproveitáveis foram vendidos. Por
tal modo acabou esse corpulento esqueleto de madeira, que um propósito
altruísta construirá, mas que a mordacidade não poupou». In Alberto Pimentel, O Torturado
de Seide, Camilo Castelo Branco, Livraria Manuel dos Santos, Lisboa, 1921.
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