domingo, 18 de outubro de 2015

O Torturado de Seide. Camilo Castelo Branco. Alberto Pimentel. «Uma passagem da Vespa refere se à alcunha picaresca do ‘dropp’: “Já foi á Foz vêr o hidrópico”. Outra passagem chama-lhe a ‘asneira de pau’»

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Este livro não aspira a ser mais que uma leve conversação com o leitor sobre assuntos camilianos e, fundamentalmente, ainda um preito de veneração e saudade que eu venho render à memoria do imortal Torturado de Seide. In Alberto Pimentel, Trafaria, Maio de 1921.

«(…) Na famosa eleição da Povoa, em 1892, o conde de Móser, apesar de velho e adoentado, foi ali espontaneamente para que não me faltassem os votos de alguns pescadores seus protegidos. Tinha o dropp da Foz o aspecto da ossatura de um prédio de dois ou três andares, e estava situado entre o edifício do tempo do infante Miguel e a muralha da Meia-Laranja, correspondendo justamente á pancada da barra, segundo a linguagem dos homens do mar. No pavimento superior foram montados aparelhos de sauvetage, entre os quais um cabo de vai-vem, que não sei ao certo se funcionava pelo sistema dos canhões porta-amarras ou por qualquer outro de arremêsso. A giria popular deu a este dropp da Foz a designação irónica de hidrópico, certamente pelo volume da construção e por alguma semelhança fonética com o vocábulo inglês nas silabas finais daquele nosso adjectivo. No mesmo ano de 1854 em que saíram as Folhas caídas, de Camilo, apareceu, logo a seguir, a Vespa do Parnaso, que é de Faustino Xavier Novais. Uma passagem da Vespa refere se à alcunha picaresca do dropp: Já foi á Foz vêr o hidroppico. Outra passagem faz-lhe alusão por meio de uma crua perifrase; chama-lhe a asneira de pau. Vem a propósito dizer qual o facto, então recente, que determinou a publicação das Folhas caídas, da Vespa do Parnaso, e ainda de outros opúsculos satíricos.
Em torno das Folhas caídas, de Garrett fizera-se em 1853, ano da sua aparição, uma atmosfera de critica ruidosa. O poeta tinha a esse tempo 54 anos de idade e declarava-se apaixonado por uma Ignota Dea. E o caso é que os seus versos, bons como todos os seus, revelavam um inesperado regresso ao lirismo ardente da mocidade. Conta Gomes Amorim que, entrando Alexandre Herculano na livraria Bertrand, e vendo umas provas tipográficas sobre o balcão, as lera e, durante a leitura, arregalara os olhos com manifesta surpresa. De quem é isto?, perguntou. Não há senão um homem em Portugal capaz de fazer tais versos! São do Garrett? O velho Francisco Bertrand respondeu-lhe: São, sim, senhor. Que lhe parece? Penso que se Camões fizesse versos de amor, na idade em que está Garrett, não era capaz de o igualar. São belissimos! Aquele diabo não póde com o talento que Deus lhe deu! Parece que tem vinte anos! Este livro fará com que se lhe perdoe tudo… O certo é que as duas primeiras edições das Folhas caídas, de Garrett, foram avidamente consumidas no mercado.
Voaram, levadas de bons e de maus ventos. Como acontece sempre que um livro produz sensação, sucedeu-se ao de Garrett uma série de publicações, algumas das quais lhe parodiavam apenas o titulo ou também o texto e outras eram consequência daquelas, embora não tivessem relação com o texto nem com o titulo. Assim, Camilo abriu o caminho com as Folhas caídas, apanhadas na lama, que compreendem sátiras portuenses, estranhas ao livro de Garrett. É do mesmo género a Vespa do Parnaso, de Faustino, por um mordomo das almas de Campanhã que vem de colarinhos tezos meter a fala no bucho ao seu Juiz, autor das Folhas caídas. Outro opúsculo, também em verso, assinado com o pseudónimo de Amaro Mendes Gaveta, e intitulado As folhas caídas apanhadas a dente e pescadas no Porto (1855), tem alguma intenção de paródia, até no texto. Sei que ainda há outro opúsculo, Folhas e cascas, mas não o vi nunca. O dropp da Foz esteve de pé durante annos. Quando começou a apodrecer, desmontaram-no, e os barrotes ainda aproveitáveis foram vendidos. Por tal modo acabou esse corpulento esqueleto de madeira, que um propósito altruísta construirá, mas que a mordacidade não poupou». In Alberto Pimentel, O Torturado de Seide, Camilo Castelo Branco, Livraria Manuel dos Santos, Lisboa, 1921.
                      
Cortesia de LMSantos/JDACT