«Ninguém me é
estranho, se for bom. A natureza é só uma para todos; a diferença está no
carácter». In Menandro (342-C.242 a. C)
A morte da águia
«(…) Poderia
acontecer estar num ponto do caminho um chacal solitário, tentado pelas
oferendas dos sacerdotes. Ouvir-se-ia um uivo horrendo talvez várias vezes
de seguida, cada um deles num tom ligeiramente mais elevado do que o anterior,
dando a sua própria versão do lamento dos coros. Depois desapareceria nas
profundezas da Terra sem deixar rasto. Seria o sinal. Numa câmara à entrada do
túmulo, sobre a areia, cinco sacerdotes, duas sacerdotisas representando Isis e
Néftis, o inconsolável Ptolomeu Filadelfo, irmão e esposo da falecida, o jovem
Ptolomeu, filho de Arsínoe e de seu primeiro esposo Lisímaco, rei da Trácia,
procederiam às cerimónias de abertura da
boca e dos olhos, praticadas sobre a múmia. Com isto pensavam os
egípcios devolver ao corpo a sua sombra, ou Kaibit, que se ausentara por
ocasião da morte. Segundo eles, estas cerimónias tornavam-se necessárias para a
restauração das funções que o corpo da defunta possuía na Terra. A falecida caminhará e falará, o seu corpo
estará na companhia dos deuses da Casa Grande do Velho em Anu e aí receberá a
coroa de Horus, senhor do género humano, ecoaria a voz do principal
sacerdote oficiante, o Querheb, segurando o rolo de papiro na mão. Um intenso e
inebriante odor proveniente dos grãos de incenso no turíbulo envolveria os
presentes.
Seriam então
reveladas as palavras de poder. Era preciso pronunciá-las de forma correcta
para que produzissem o efeito desejado. Disso se encarregaria o sacerdote em
seguida. Deste modo, a rainha morta poderia transformar as substâncias
perecíveis em imperecíveis e abrir as portas da percepção em Duat, o mundo das
sombras. A notícia da morte da rainha Arsínoe espalhara-se na cidade de
Alexandria. Uma multidão heterogénea invadira as ruas principais. Viam-se
homens de barba frisada, magnificamente enfeitada com fios de ouro e prata e,
aqui e ali, mulheres maduras cuja pintura dos olhos invariavelmente derretia
nos locais menos convenientes, escorrendo ao longo da superfície da pele e
manchando as suas vestes de linho; homens
na flor da juventude transportavam discretamente pequenas bolsas contendo o último
grito em matéria de preservativos, confeccionados com tripa de carneiro, ou
similar, os olhos mais fixos nos bandos de raparigas do que nos acontecimentos
ou nas notícias sobre o cortejo fúnebre. As crianças encavalitavam-se aos
ombros dos pais, transportadas com mais cuidado do que as estátuas dos deuses
pelos sacerdotes. Desejosos de voltar para casa, viajantes deambulavam
esgotados, saciados de multidão.
Tal como
frequentemente sucede quando uma grande massa se aglomera, logo alguns
discretos vendedores surgiram não se sabe donde, oferecendo lentilhas e sopa de
cebola, amuletos e jóias, algumas provenientes do saque dos túmulos antigos, e
pães confeccionados em forma de animais, alguns com motivos algo ousados e até
obscenos. A verdadeira morte de Arsínoe iria consumar-se, porém, com o
apagamento da própria dinastia, que com ela conhecera os seus momentos mais
faustosos. Tornou-se um sangue maldito que deixou cair o ceptro perdendo-se
em lutas fratricidas, quando a multidão das concubinas oficiais, das
esposas rainhas e das numerosas contestações armadas pôs em constante perigo o
exercício do poder, legitimando toda a espécie de ambições. Da primitiva
simplicidade de comportamento e de traje, diádocos
e epígonos iriam evoluir para a complexidade de uma brilhante vida de
corte, patente entre os Lágidas do Egipto, embora entre os Antigonidas, mais
próximos das origens, e os Atálidas, de baixa extracção, se conservasse um
gosto por uma modéstia mais helénica.
Os deboches, os
crimes, os incestos, os assassínios a soldo, actos torpes que depois se iriam
tornar regras dinásticas, marcariam com um ferrete sangrento a cidade fundada
por Alexandre, consubstanciada na sua forma perfeita nos planos de Dinócrates
de Rodes. O neto de Filadelfo, Ptolomeu Filopator, tornar-se-ia num joguete nas
mãos da amante Agátocleia e do favorito Agátocles, irmã e irmão, que exploravam
a sua volúpia. Manipulado pelo seu sinistro conselheiro e ministro Sosibios,
Filopator morre aos trinta e nove anos arruinado pelos deboches, assassino de
sua mãe Berenice, de seu tio Lisímaco, de seu irmão Magas e de sua esposa e
irmã Arsínoe. Dizia-se até que a mão criminosa de Agátocleia, a concubina
real, não fora estranha ao homicídio da malograda Arsínoe.
Nada do que
Aristóteles idealizara nas suas lições, nem do plano cultural e político de
Alexandre faria prever uma tal evolução. Não obstante, não são os escritos
políticos do Estagirita que nos fornecem os modelos para a análise
dos factos políticos. E a Poética.
Isto na medida em que tanto a política como a tragédia utilizam o mesmo modelo
de construção. Não no sentido do teatro político como cena enganadora,
sediciosa, simples faz-de-conta, espelho deformador e perverso da essência do
real; não como perícia em confundir o que é apresentado e mostrado na cena
política com a verdadeira realidade. É fundamentalmente pela criação de uma
superfície agitada de emoções tendentes a despertar o medo e a piedade, na
origem do desenvolvimento do espectáculo da cena trágica, que a política e a
tragédia dão as mãos. O aquecimento dos humores conseguirá a cura e
libertação dos males através da catarse trágica provocada pelas emoções do
espectáculo, é o que pensa o filósofo». In Maria Lucília Meleiro, A Rosa de
Alexandria, tradução de João Lourenço, Grandes Narrativas nº 192, Editorial
Presença, Lisboa, 2002, ISBN 972-232-961-8.
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