domingo, 18 de outubro de 2015

Folhas Caídas. Almeida Garret. «… a leitura de Folhas Caídas evidencia, diria que até à exaustão, uma teatralidade que põe em dúvida a sinceridade da confissão anunciada. E ainda não se sonhava o nascimento de Fernado Pessoa...»

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[…] Essa é uma disputação mais longa. Mas sei que as presentes Folhas Caídas representam o estado de alma do poeta nas variadas, incertas e vacilantes oscilações do espírito, que, tendendo ao seu fim único, a posse do Ideal, ora pensa tê-lo alcançado, ora estar a ponto de chegar a ele, ora ri amargamente porque reconhece o seu engano, ora se desespera de raiva impotente por sua credulidade vã. Deixai-o passar, gente do mundo, devotos do poder, da riqueza, do mando, ou da glória. Ele não entende bem disso, e vós não entendeis nada dele. Deixai-o passar, porque ele vai onde vós não ides; vai, ainda que zombeis dele, que o calunieis, que o assassineis. Vai, porque é espírito, e vós sois matéria. E vós morrereis, ele não. Ou só morrerá dele aquilo em que se pareceu e se uniu convosco. E essa falta, que é a mesma de Adão, também será punida com a morte. Mas não triunfeis, porque a morte não passa do corpo, que é tudo em vós, e nada ou quase nada no poeta». In Garret, Janeiro, 1853.

«Convém, desde já, alertar os leitores para o seguinte aspecto: em Folhas Caídas, o poeta faz uma dedicatória no primeiro poema da colectânea (Ignoto Deo) e, de imediato, apresenta a despedida no segundo (Adeus!). Seguem-se, então, as restantes folhas caídas, nas quais, numa espécie de analepse narrativa, nos dá conta de um caminho percorrido por duas personagens (eu e tu) que as conduziu ao momento do adeus». In Farol das Letras.

«(…)
II
Adeus!
«Adeus!, para sempre adeus!,
vai-te, oh!, vai-te, que nesta hora
sinto a justiça dos Céus
esmagar-me a alma que chora.
Choro porque não te amei,
choro o amor que me tiveste;
o que eu perco, bem no sei,
mas tu..., tu nada perdeste:
que este mau coração meu
nos secretos escaninhos
tem venenos tão daninhos
que o seu poder só sei eu.
Oh!, vai..., para sempre adeus!
Vai, que há justiça nos Céus.
Sinto gerar na peçonha
do ulcerado coração
essa víbora medonha
que por seu fatal condão
há-de rasgá-lo ao nascer:
há-de, sim, serás vingada,
e o meu castigo há-de ser
ciúme de ver-te amada,
remorso de te perder.
Vai-te, oh!, vai-te, longe, embora,
que sou eu capaz agora
de te amar, Ai!, se eu te amasse!
Vê se no árido pragal
deste peito se ateasse
de amor o incêndio fatal!
Mais negro e feio no Inferno
não chameja o fogo eterno.
Que sim? Que antes isso? Ai, triste!
Não sabes o que pediste.
Não te bastou suportar
o cepo-rei; impaciente
tu ousas a deus tentar
pedindo-lhe o rei-serpente!
E cuidas amar-me ainda?
Enganas-te: é morta, é finda,
dissipada é a ilusão.
Do meigo azul de teus olhos
tanta lágrima verteste,
tanto esse orvalho celeste
derramado o viste em vão
nesta seara de abrolhos,
que a fonte secou. Agora
amarás..., sim, hás-de amar,
amar deves... Muito embora...
Oh!, mas noutro hás-de sonhar
os sonhos de oiro encantados
que o mundo chamou amores.
E eu réprobo..., eu se o verei?
Se em meus olhos encovados
der a luz de teus ardores...
Se com ela cegarei?
Se o nada dessas mentiras
me entrar pelo vão da vida...
Se, ao ver que feliz deliras,
também eu sonhar ...Perdida,
perdida serás, perdida.
Oh!, vai-te, vai, longe, embora!
Que te lembre sempre e agora
que não te amei nunca..., ai!, não:
e que pude a sangue-frio,
covarde, infame, vilão,
gozar-te, mentir sem brio,
sem alma, sem dó, sem pejo,
cometendo em cada beijo
um crime... Ai!, triste, não chores,
não chores, anjo do Céu,
que o desonrado sou eu.
Perdoar-me, tu?... Não mereço.
A imundo cerdo voraz
essas pérolas de preço
não as deites: é capaz
de as desprezar na torpeza
de sua bruta natureza.
Irada, te há-de admirar,
despeitosa, respeitar,
mas indulgente... Oh!, o perdão
é perdido no vilão,
que de ti há-de zombar.
Vai, vai..., para sempre adeus!
Para sempre aos olhos meus
sumido seja o clarão
de tua divina estrela.
Faltam-me olhos e razão
para a ver, para entendê-la:
alta está no firmamento
de mais, e de mais é bela
para o baixo pensamento
com que em má hora a fitei;
falso e vil o encantamento
com que a luz lhe fascinei.
Que volte a sua beleza
do azul do céu à pureza,
e que a mim me deixe aqui
nas trevas em que nasci,
trevas negras, densas, feias,
como é negro este aleijão
donde me vem sangue às veias,
este que foi coração,
este que amar-te não sabe
porque é só terra, e não cabe
nele uma ideia dos Céus ...
Oh!, vai, vai; deixa-me adeus!»
Poema de Almeida Garret, in ‘Folhas Caídas’

In Almeida Garret, Folhas Caídas, Publicações Europa América, Livros de Bolso, 2007, ISBN 978-972-102-783-1.

Cortesia de PEAmérica/JDACT