domingo, 11 de outubro de 2015

Novas Cartas Portuguesas. Maria Barreno, Maria Horta, Maria Costa, (As Três Marias). «Pensar a génese de “Novas Cartas Portuguesas”, integrando-as no contexto histórico, político, social e literário do Estado Novo, ajuda a compreender o seu impacto na sociedade portuguesa pós-25 de Abril»

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«Está decretada a gravidade desta empresa. O que farei convosco será grave, ainda que para tanto haja que rir-me. Ou, como hoje, nem tanto». In Ana Luísa Amaral, Novas Cartas Portuguesas

«(…) A linha que havia de revitalizar a música portuguesa, seguida por Sérgio Godinho, havia sido iniciada por José Afonso, e a sua canção Vampiros era bem conhecida nesse ano de 1971, o mesmo ano em que um país apático assistia ao Festival da Eurovisão com Tonicha a cantar Menina do Alto da Serra. Fora de Portugal, em Janeiro desse ano, tinha lugar a terceira alunagem, a da nave Apolo 14, e o Vietname do Sul invadia o Laos; em Abril, meio milhão de norte-americanos manifestava-se, em Washington, contra a guerra do Vietname; em Julho, era inaugurada a torre sul do World Trade Center; em Outubro, a Assembleia Geral das Nações Unidas admitia a República Popular da China; e, em Dezembro, Pablo Neruda ganhava o Prémio Nobel da Literatura. Nove meses após Maio de 1971, em Lisboa, já no início de 1972, Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho Costa punham termo à escrita de Novas Cartas Portuguesas, escrevendo, em carta penúltima: Em boa verdade vos digo: que continuamos sós mas menos desamparadas. E, em Abril de 1972, o livro seria publicado, com a chancela dos Estúdios Cor, então com direcção literária de Natália Correia, que, mesmo tendo sido instada a cortar partes da obra, insistiu em a publicar na íntegra. A história que rodeou a publicação e primeira recepção da obra é conhecida por entrevistas dadas aos jornais, sobretudo por uma das suas autoras, Maria Teresa Horta: sabe-se que essa primeira edição foi recolhida e destruída pela censura de Marcelo Caetano, três dias após ter sido lançada no mercado; sabe-se do processo judicial que foi instaurado às três autoras, por terem escrito, em colaboração, mediante prévia combinação, um livro ao qual deram o nome de Novas Cartas Portuguesas, posteriormente considerado de conteúdo insanavelmente pornográfico e atentatório da moral pública; sabe-se dos interrogatórios da PIDE/DGS, a que as três autoras foram sujeitas, separadamente, na tentativa de se descobrir qual delas havia escrito as partes consideradas de maior atentado à moral, e também da recusa das três (que até hoje se mantém) em o revelar; sabe-se do julgamento, que se iniciou a 25 de Outubro de 1973, e que, após sucessivos incidentes e adiamentos, só não teria lugar devido à Revolução de Abril. Pensar a génese de Novas Cartas Portuguesas, integrando-as no contexto histórico, político, social e literário do Estado Novo, ajuda a compreender o seu impacto na sociedade portuguesa pós-25 de Abril e a sua recepção internacional, despoletada pela quase imediata tradução da obra em vários países ocidentais e pela sua proeminente repercussão junto de vários grupos e figuras ligadas ao feminismo internacional, ou ao mundo literário em geral. Será de recordar, depois da apreensão do livro e do processo instaurado às três autoras (um processo que, deve dizer-se, foi movido pelo próprio Estado português), a solidariedade da comunidade literária e intelectual portuguesa e estrangeira, os protestos e as manifestações em prol da causa das três Marias, como viria a ficar conhecido o processo. Essas manifestações depressa tomariam proporções inimagináveis: desde a cobertura do julgamento feita pelos meios de comunicação internacionais (como os jornais Le Monde, Times, New York Times, Nouvel Observateur, L’Express, Libération, e redes de televisão como a CNN), até às manifestações feministas em várias embaixadas de Portugal no estrangeiro, passando pela defesa pública da obra e das autoras levada a cabo por nomes como Simone Beauvoir, Marguerite Duras, Christiane Rochefort, Doris Lessing, Iris Murdoch ou Stephen Spender, foram várias as acções que fizeram com que este caso fosse votado, em Junho de 1973, numa conferência da National Organization for Women (NOW), em Boston, como a primeira causa feminista internacional. Do ponto de vista literário, o facto de o livro consistir em 120 textos que entrecruzam cartas, poemas, relatórios, textos narrativos, ensaios e citações, escritos colectivamente por três autoras que, contudo, não os assinam individualmente, problematizava já, esbatendo, as noções estabelecidas de autoria e de géneros literários. Ao mesmo tempo, do ponto de vista histórico-social, as críticas que o livro tecia à sociedade contemporânea portuguesa, abordando temas censurados ou temas tabu, como a guerra colonial, o enquadramento institucional da família católica, ou o estatuto social e legal das mulheres, gerou, no contexto do Estado Novo, fortes reacções por parte daqueles ligados ao poder. Mas o escândalo que rodeou a publicação de Novas Cartas e o julgamento das autoras, que trouxe o livro à atenção da comunidade internacional, assim como o forte envolvimento dos meios de comunicação internacionais, teria também um número de consequências perversas, sendo a mais proeminente a ideia, sobretudo generalizada em Portugal, de que tanto o livro como o seu significado cultural mais vasto são de uma ordem datada, isto é, que a cronologia é estática e não em devir e que a sua importância histórica é sincrónica e não diacrónica». In Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Maria Velho Costa, Novas Cartas Portuguesas, 1972, edição anotada, Publicações dom Quixote, 1998, 2010, ISBN 978-972-204-011-2.

Cortesia PdQuixote/JDACT