«Está decretada a gravidade desta empresa. O que farei convosco
será grave, ainda que para tanto haja que rir-me. Ou, como hoje, nem tanto». In
Ana Luísa Amaral, Novas
Cartas Portuguesas
«(…)
A linha que havia de revitalizar a música portuguesa, seguida por Sérgio
Godinho, havia sido iniciada por José Afonso, e a sua canção Vampiros era bem conhecida nesse
ano de 1971, o mesmo ano em que um
país apático assistia ao Festival da Eurovisão com Tonicha a cantar Menina
do Alto da Serra. Fora de Portugal, em Janeiro desse ano, tinha lugar a terceira
alunagem, a da nave Apolo 14, e o Vietname do Sul invadia o Laos; em Abril,
meio milhão de norte-americanos manifestava-se, em Washington, contra a guerra
do Vietname; em Julho, era inaugurada a torre sul do World Trade Center; em
Outubro, a Assembleia Geral das Nações Unidas admitia a República Popular da
China; e, em Dezembro, Pablo Neruda ganhava o Prémio Nobel da
Literatura. Nove meses após Maio de 1971,
em Lisboa, já no início de 1972, Maria
Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho Costa punham termo à escrita
de Novas Cartas Portuguesas,
escrevendo, em carta penúltima: Em boa
verdade vos digo: que continuamos sós mas menos desamparadas. E, em
Abril de 1972, o livro seria
publicado, com a chancela dos Estúdios Cor, então com direcção literária de Natália
Correia, que, mesmo tendo sido instada a cortar partes da obra, insistiu em
a publicar na íntegra. A história que rodeou a publicação e primeira recepção da
obra é conhecida por entrevistas dadas aos jornais, sobretudo por uma das suas
autoras, Maria Teresa Horta: sabe-se que essa primeira edição foi
recolhida e destruída pela censura de Marcelo Caetano, três dias após ter
sido lançada no mercado; sabe-se do processo judicial que foi instaurado às
três autoras, por terem escrito, em colaboração, mediante prévia combinação, um
livro ao qual deram o nome de Novas
Cartas Portuguesas, posteriormente considerado de conteúdo insanavelmente pornográfico e atentatório da moral pública;
sabe-se dos interrogatórios da PIDE/DGS, a que as três autoras foram sujeitas,
separadamente, na tentativa de se descobrir qual delas havia escrito as partes
consideradas de maior atentado à moral, e também da recusa das três (que até
hoje se mantém) em o revelar; sabe-se do julgamento, que se iniciou a 25 de Outubro
de 1973, e que, após sucessivos
incidentes e adiamentos, só não teria lugar devido à Revolução de Abril. Pensar
a génese de Novas Cartas Portuguesas,
integrando-as no contexto histórico, político, social e literário do Estado
Novo, ajuda a compreender o seu impacto na sociedade portuguesa pós-25 de Abril
e a sua recepção internacional, despoletada pela
quase imediata tradução da obra em vários países ocidentais e pela sua
proeminente repercussão junto de vários grupos e figuras ligadas ao feminismo
internacional, ou ao mundo literário em geral. Será de recordar, depois da
apreensão do livro e do processo instaurado às três autoras (um processo
que, deve dizer-se, foi movido pelo próprio Estado português), a
solidariedade da comunidade literária e intelectual portuguesa e estrangeira,
os protestos e as manifestações em prol da causa das três Marias, como viria a
ficar conhecido o processo. Essas manifestações depressa tomariam proporções
inimagináveis: desde a cobertura do julgamento feita pelos meios de comunicação
internacionais (como os jornais Le Monde, Times, New York
Times, Nouvel Observateur, L’Express, Libération, e
redes de televisão como a CNN), até às manifestações feministas em várias
embaixadas de Portugal no estrangeiro, passando pela defesa pública da obra e das
autoras levada a cabo por nomes como Simone Beauvoir, Marguerite Duras,
Christiane Rochefort, Doris Lessing, Iris Murdoch ou Stephen Spender, foram
várias as acções que fizeram com que este caso fosse votado, em Junho de 1973, numa conferência da National Organization
for Women (NOW), em Boston, como a primeira causa feminista internacional. Do ponto de vista
literário, o facto de o livro consistir em 120 textos que entrecruzam cartas,
poemas, relatórios, textos narrativos, ensaios e citações, escritos
colectivamente por três autoras que, contudo, não os assinam individualmente,
problematizava já, esbatendo, as noções estabelecidas de autoria e de géneros
literários. Ao mesmo tempo, do ponto de vista histórico-social, as críticas que
o livro tecia à sociedade contemporânea portuguesa, abordando temas censurados
ou temas tabu, como a guerra colonial, o enquadramento institucional da família
católica, ou o estatuto social e legal das mulheres, gerou, no contexto do
Estado Novo, fortes reacções por parte daqueles ligados ao poder. Mas o
escândalo que rodeou a publicação de Novas Cartas e o
julgamento das autoras, que trouxe o livro à atenção da comunidade
internacional, assim como o forte envolvimento dos meios de comunicação
internacionais, teria também um número de consequências perversas, sendo a mais
proeminente a ideia, sobretudo generalizada em Portugal, de que tanto o livro como
o seu significado cultural mais vasto são de uma ordem datada, isto é, que a cronologia é estática e não em devir e que
a sua importância histórica é sincrónica e não diacrónica». In Maria
Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Maria Velho Costa, Novas Cartas Portuguesas,
1972, edição anotada, Publicações dom Quixote, 1998, 2010, ISBN
978-972-204-011-2.
Cortesia
PdQuixote/JDACT