Ha relâmpagos de memoria que abrem um vinco na fronte do homem. E a
velhice extemporânea de alguns o que é se não recordarem-se? In
Camilo Castelo Branco, A Enjeitada
Conforme o original
«(…) Por um cabello que
não fui então martyr do génio! A victima crucificada na porta da egreja não era
das que dizem: Senhor, perdoai ao poeta,
que não sabe as asneiras que diz! Apenas lhe constou que era eu o
instrumento da vingança de seu irmão, preferiu quebrar o instrumento, e deixar
não só o fidalgo, que também o boticário em paz. Poeta era eu só n’aquelle
quadrado de dez léguas: avisadamente conjecturou o homem que, esganando a musa que
o verberara, abafaria aquelle respiraculo da detracçâo inimiga. O padre
mestre avisou-me horas antes da espera e da sepultura. Fugi com o magnum léxicon debaixo do braço, e
com os ossos direitos que aquella terra ingrata me queria comer. Abandonando Ribeira de Pena precipitadamente,
como quem foge a um perigo certo. Camillo deixou alli memoria de duas
creancices: o casamento e a satyra.
Que admira, se elle era uma creança de dezeseis annos?
Sob a protecção do
sogro, veio para Lisboa, onde tornaria a ver Amélia ou Celestina, a qual se mostraria indifferente á recordação
do galanteio infantil que ambos haviam entretido. Lisboa seria a terra
escolhida intencionalmente, talvez por conselho de Sebastião Santos, para que
fosse maior a distancia interposta ao auctor da satyra e ao seu feroz inimigo
de Ribeira de Pena. Mas Camillo não estava habituado á vida da capital, que lhe
fazia saudades da vida dos campos e dos passarinhos dos soutos e olivaes. Quando
julgou mais acalmada a tempestade que a satyra desencadeara, foi para o Porto a
fim de estudar preparatórios, porque o sogro não tinha desistido ainda de
formal-o em medicina. De repente, num impeto de mocidade irrequieta, a que a
saudade da infância não seria de todo estranha, Camillo emancipou-se da tutella
de Sebastião Santos e acoitou-se em Villa Real em casa da tia dona Rita. Desde
essa hora, o sogro julgou prejudicados todos os seus projectos, e vociferava
nos soalheiros de Friume, especialmente na loja, contra o genro, que elle
próprio havia conduzido imprudentemente. A victima da cólera de Sebastião era a
filha, que nenhuma culpa tinha nas occorrencias que lhe arrancaram dos braços o
marido.
Mas o pai enfurecia-se
quando via no collo de Joaquina uma creança recemnascida: revelava
assomos de medonha cólera. A pobre rapariga, desejando juntar-se ao marido, contratou duas mulheres de Friume, para que
fossem a Villa Real levar a Camillo uma carta em que se dizia enferma. As
duas mensageiras enganaram-na, porque se occultaram durante alguns dias, findos
os quaes appareceram simulando a resposta de que Camillo não estava em Villa
Real, mas que dona Rita Castello Branco lhes assegurara que, logo que elle
regressasse alli, lhe entregaria a carta de Joaquina Pereira. A verdade
é que Camillo estava em Villa Real, e não recebera a mensagem. Apezar de haver
encontrado um novo idyllio, os factos, que depois se deram, fazem crer que
partiria para Friume se a carta de Joaquina Pereira lhe houvesse chegado
ás mãos. Como elle se demorasse em voltar, a filha de Sebastião Santos alliciou
um mensageiro de maior confiança, Bernardo Alves, para ir a Villa Real
com nova carta. Adivinha-se facilmente o que essa carta diria. Fallar-lhe-ia da
filhinha, das suas graças infantis, das cóleras com que Sebastião Santos a
atormentava, e da supposta doença, piedosa mentira destinada a commovêl-o.
Camillo contou a
Bernardo Alves os motivos que tinha para não ir a Friume: receava a brutalidade
do sogro e talvez a vingança da victima da satyra; mas romperia por todas essas
considerações, se tivesse meios para sustentar a mulher e a filha. Bernardo
Alves contrapoz, certamente, que tudo se concertaria do melhor modo possível, e
Camillo não duvidou acompanhal-o a Friume. Avistou-se com a mulher e,
reconhecendo que ella não estava doente, teve uma phrase carinhosa, que é
confessada por uma testemunha presencial: Então eu por aqui tão afflicto, e tu
de perfeita saúde? Beijou a filhinha, e parece que, graças á intervenção de Bernardo
Alves, se reconciliou algum tanto com o sogro, que, sempre desconfiado, o
vigiava como um Argus, procurando
evitar a aproximação intima dos dois casados. Combinou-se que Camillo voltaria
para o Porto a continuar os estudos: que, logo que elle se formasse em
medicina, Joaquina Pereira sahiria de casa do pai para a companhia do
marido: e que a filhinha seria entretanto educada num Recolhimento portuense». In Alberto Pimentel, A Primeira Mulher de
Camilo, Silêncio Injustificado, PQ 9261C3Z738, Guimarães & Cª - Editores,
Lisboa, 1916.
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