«Há uma idade em que
se ensina o que se sabe; mas vem em seguida outra, em que se ensina o que não
se sabe: isso se chama pesquisar».
In
Roland Barthes
«A poeta portuguesa Fiama
Hasse Pais Brandão (1938-2007), uma das mais importantes
vozes literárias surgidas a partir da década de 60 na literatura lusófona,
tornou-se, com o tempo, referência e lugar de passagem obrigatório não somente
para os críticos, mas também servindo de parâmetro para outros que lidam com a
arte de escrever. Para o crítico americano Harold Bloom, seria uma poeta forte. A obra poética da escritora
pode ser distinguida em duas fases, conformadoras de dois registos, ou seja,
duas poéticas bastante distintas, organizadas aqui em dois grandes arranjos, o
que não podemos deixar de reconhecer como bastante incompletos, visto terem
partido de uma simplificação meramente didáctica, pois sabemos muito bem que os
seus livros não detém a noção codificada de dicção,
na medida em que cada livro se apresenta com um ethos específico.
Ora, foi justo o facto de não haver preocupação com um âmbito que a definisse
como poeta, que se fizesse reconhecer de imediato um texto como pertencente à
sua assinatura, quer dizer, refractou a ideia sedimentada de que o poeta detém
uma dicção que o faz diferente dos demais pares. Portanto, eis aqui o que
inicialmente nos despertou a simpatia,
para, em seguida, adentrarmos de maneira mais sistemática numa investigação com
mais rigor e calcado em bases teóricas e metodológicas. Vejamos como tomamos a
liberdade de organizar: A primeira fase, tendo como ponto de partida a
publicação de Morfismos (1961), caracteriza-se pela busca de
um poema com depuramento formal e rigor com relação à necessidade de colocar a
palavra em evidência, muita vez até isolada, sem os conectivos requeridos pela
pontuação gramatical, o que gera uma densidade e uma tensão semânticas que, por
vezes, beira a metáforas e imagens surrealistas, dado o grau de arbitrariedade
e ausência de motivação lógica entre os elementos postos para a aproximação com
o objectivo de articular a imagem, quase sempre de natureza crítica ou
metalinguística. Há um deliberado controle das emoções, buscando uma escritura
impessoal, sem marcas autobiográficas. Assim, encontramo-nos diante de uma
poesia com pouca transitividade, espécie de criptografia linguística no qual o
signo poético não se deixa decodificar numa primeira investida. Eis que temos
os livros, para retermos três exemplos, Matéria (1960-1965),
O nome lírico (1967), Era (1974).
Depois,
há uma segunda fase que, a bem da verdade, já se encontrava implícita em poemas
completos ou em laivos nos versos de factura mais directiva, sem retorcimento
sintático ou fragmentação, distanciando-se de um discurso ostensivamente
criptográfico, observado em inúmeros poemas da primeira fase. Constatamos aqui
uma poesia extremamente simples e transitiva, plena de marcas de oralidade, com
metáforas claras e dotada de uma argúcia pouco comum, estruturadas num registo
que beira a prosa. Os livros que melhor sintetizam tudo o que acima discorremos
são Área Branca (1978), Epístolas e memorandos
(1996),
Cenas vivas (2000), As fábulas (2002).
São arranjos de poemas nos quais a poeta por meio de artifícios vários,
mormente os advindos de um discurso mais prosaico, almeja uma simplicidade
expressiva, escorreita e elegante, refractando o muito do que podemos chamar de
experimentalismos presentes nos seus
primeiros livros, no qual havia deliberadamente uma preocupação com a forma do
poema, com a estrutura, com a disposição das palavras, conseguida esta através
de uma série de elipses, fracturas e fragmentações, estrofação livre,
manifestando-se sobretudo por imprimir no poema não a tradicional organização
sintáctica com os seus implícitos e marcas lógicas, mas numa atitude explícita
de subverter as regras da gramática normativa. Há uma outra coisa muito curiosa
nessa fase, embora não sendo uma poesia de cunho confessional, não deixa de
transparecer através de alguns sinais as marcas de um espírito atento à vida e
sua dinâmica. Eis, então, olhos perscrutando o derredor, com seus objectos
estáticos ou com a dinamicidade que a tudo preside, lenta ou ligeira.
Em síntese, como não poderia deixar de ser, o olhar da poeta
inscreve-se como espécie de lápis que imprime no papel em branco o âmbito, o
contorno, as fronteiras, conformando os objectos em a sua singularidade, em sua
individualidade, apresentando-o, encenando-o. Para quê? Para que uma singularidade, um evento que sucede
em determinado espaço ou tempo tenha um carácter mais universal, falo no
sentido de que ocorrem estruturas antropológicas que são inerentes ao humano,
partilhados desde sempre por todas as culturas; o poeta, como sendo o que desce
a níveis mais profundos da psicologia humana, faz emergir por meio de imagens,
elementos constituintes do Imaginário; no caso aqui tratado, a poeta procede de
modo a equacionar e problematizar fenómenos e objectos que a circundam, numa
atitude filosófica, detendo-se com mais atenção, e muita propriedade, sobre
questões ontológicos e estéticos. Por derradeiro, gostaríamos de enfatizar a
bela simbiose entre mímeses e episteme, organizada numa poesia de
feitio simples, conseguida por uma rara intuição do sensível. Acontece que
mesmo tendo efectivado uma separação metodológica em duas fases distintas,
longe esquecermos que em toda e qualquer obra poética é possível detectar uma
série de constantes psicológicas manifestada por meio de símbolos que se
destacam como os mais expressivos e reveladores, aparecendo sob diversas ópticas,
mesclando-se com outros pares de mesmo valor de sentido e eficácia no
imaginário e nas representações sociais, formando enxames ou constelações de
imagens, que se entrelaçam muitas vezes de maneira notável, comprovando a
homogeneidade das imagens coalhadas na obra de determinado poeta». In Márcio Lima Dantas, Esboço para um possível Ensaio
sobre Fiama Hasse Pais Brandão, Departamento de Letras da UFRN, Tópicos
de Literatura Portuguesa II, Wikipédia, Poesia 61.
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