«(…) Foi Stochamer bedel de Cânones e de Leis na
Universidade, sendo de notar que o lugar de bedel era então mais
importante do que hoje, se é que tal posto ainda existe. Tenho notícia de um
Doutor Nicolau Lopes que foi bedel. A respeito da vida e obras de Stochamer,
veja-se o artigo que sobre ele escrevi para a Enciclopédia Verbo. Quanto
a Fábio Arcas foi sepultado com uma bela inscrição latina que Stochamer compôs
em sua honra, na Igreja de São Cristóvão, mais tarde profanada e transformada
no actual Cinema Sousa Bastos, depois de ter sido teatro académico no
século passado. Estrangeiro também devia ser um César Picolelli, estudante
universitário que, por recomendação de Ascânio Escoto, um italiano, foi nomeado
bedel
da Faculdade de Leis em 18 de Janeiro de 1549. Será de recordar aqui que nenhum dos estrangeiros que conheço
ficou sujeito às consequências de um alvará de 16 de Outubro de 1546 que mandava entregar ao lente de
prima de Medicina os cadáveres dos doentes estrangeiros que falecessem no
Hospital de Coimbra, acentuando e serão
pessoas estrangeiras de que por isso se não siga escândalo algum. Vae
soli!
Deve acrescentar-se que, pelos Estatutos
de 1559, todos os cadáveres do Hospital, e não apenas os dos
estrangeiros desconhecidos, ficavam sujeitos a exercícios anatómicos. Na
pequena cidade de Coimbra, a vida universitária tinha uma projecção maior do
que hoje. O Conimbricae Encomium de Inácio Morais, publicado em 1554, assim canta em dísticos elegíacos
as cerimónias públicas da Universidade: … acrescente-se
que também Coimbra distrai o seu povo com alegres festejos que celebra com
frequência. Assim, todas as vezes que alguém solicita o prémio dos seus estudos
e que lhe cinjam gloriosamente a cabeça com o ramo de louro, canta-se, à
maneira antiga, o alegre triunfo e um cortejo se encaminha ordenadamente às
doutas Escolas. Vai à frente o Reitor, acompanhado de áureos feixes, e segue-o multidão
espessa de varões. Vai a comitiva dos doutores, com as têmporas coroadas e os
trajos tingidos cada um da cor que lhe pertence. A multidão cheia de espanto
corre de todos os lados na ânsia de ver, e reboam os tambores tocados em
festivo modo. E a rouca trombeta mistura, com alternado estrépito, o som e juntam
as flautas ocas seus finos ritmos. Então gostam de andar, por um lado e por
outro, jovens de rosto mascarado e de soltar graciosas troças. Como outrora,
quando o general romano, dominado o inimigo, celebrava o triunfo e conduzia
vencedor os cavalos brancos, e coroado de louros era recebido com grande honra
pelo Senado, e o povo em alta voz dava-lhe o seu aplauso, de igual modo toda a
Academia se alegra em festivo clamor, quando alguém recebe o apolíneo louro. Esplêndidas
tapeçarias ornamentam o teatro espaçoso: senta-se a ordem dos senadores e o
coro de Palas. Então deleitar-te-á a abundância eloquente da prosa e uma graça
que flui de Cícero. E há-de seduzir-te a tragédia pomposa que caminha em graves
versos ou a musa cómica, em seu leve soco. [… adde, quod et populum laetis
Conimbrica ludis Exhilarat, crebro quos celebrare solet. Nam quoties quisquam
siudiis sua praemia poscit, Et lauri emeritum cingere fronde caput: Antique
canitur laetus de more triumphus, Pergit et ad doctas ordine pompa Scholas. Incedit
rector, comitatus fascibus aureis. Atque comes sequitur densa caterua uirum. Turba
it doctorum, redimitaque têmpora sertis, Textaque quisque suo tincta colore
gerunt. Plebs stupefacta ruit studio diffusa uidendi, Et reboant festo tympana
pulsa sono. Miscet et alterno strepitu tuba rauca sonorem, Argutos fundunt et
caua buxa modos. Turn personatis iuuenes discurrere gaudent Vultibus, et
lépidos ore referre iocos. Sic cum Romanus domito dux hoste triumphum, Atque
olim niueos uictor agebat equos: Laurigerum magno excipiebat honore senatus, Et
populus plausum uoce sonante dabat. Tota igitur gaudet clamore Academia festo, Donatur
lauru dum quis Apollinea. Attalica exornant spatiosum aulaea theatrum: Ordo
sedet patrum, Palladiusque chorus. Copia mulcebit tune te facunda soluti Eloquii,
atque fluens de Cicerone lepos. Teque graui incedens tumefacta tragoedia uersu,
Aut socco alliciet cómica Musa leui. (o texto é o da edição de 1554, tirado do exemplar da Biblioteca
Nacional de Lisboa, Res. 191 V)].
Tirei esta tradução dum artigo
que publiquei, há anos, na revista Panorama (n.° 15, III Série, Lisboa,
Setembro de 1959; título Coimbra do Renascimento: um texto pouco conhecido). O
doutoramento solene é claramente comparado no poema latino de Inácio Morais a
um triunfo militar romano, quer antigo, quer às imitações modernas como a que
dele fizeram em Goa, em 1547, para
celebrar o triunfo de João Castro sobre os sitiantes de
Diu e pode ainda ver-se nas tapeçarias que se encontram, no Museu Imperial de
Viena. O cortejo académico segue pelas ruas da cidade, a caminho do palácio
onde João III instalara o Estudo Geral, em contraste com a pacatez da cerimónia
actual, circunscrita ao pátio da Universidade e à Sala dos Capelos. Os versos
finais do trecho que citei parecem aludir a representações teatrais como as que
estavam previstas nos estatutos do Colégio das Artes e de certo ocorreram em
Coimbra, depois de 1548, se já não existiam
antes como uma carta de 1538 deixa
entrever. Michel Montaigne recorda que no Collège de Guyenne o principal André Gouveia
organizava anualmente esses espectáculos como parte da actividade pedagógica da
escola e de certo terá continuado a fazer o mesmo em Coimbra, tanto mais que
três dos seus companheiros eram dados ao teatro novilatino. Refiro-me ao
escocês George Buchanan, o francês Guilherme de Guérente e o português Diogo
Teive. Mas das representações dos bordeleses não ficou qualquer
descrição, decerto contribuindo para o esquecimento as suspeitas de heresia que
a Inquisição (maldita) lançou sobre os
dois professores estrangeiros e o português». In Américo Costa Ramalho, Alguns
aspectos da vida universitária em Coimbra nos meados do século XVI (1548-1554),
Revista Humanitas, volume XXXVII-XXXVIII, 1985-1986, Universidade de Coimbra.
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