O
Nome Maldito
«Numa
manhã chuvosa de Janeiro, uma espessa fumarada negra subiu no céu de Lisboa, ao
som de gritos de desespero. Junto ao Tejo, em Belém, no meio de indizíveis
tormentos, morriam os marqueses de Távora e os seus filhos. Os corpos, meio
desfeitos pelo suplício e misturados com alcatrão, arderam até ao cair da
noite. Pedro Almeida Portugal não ouviu esses gritos nem viu o fumo que se
confundia com as nuvens baixas, carregadas de chuva. Percebera, recordando o
semblante preocupado do pai, da última vez que o vira, e por as lágrimas que
sua mãe chorava nesses dias, que qualquer coisa triste estava a acontecer. Mas
desconhecia ainda o que fosse a morte. Só não compreendia porque o tinham
separado dos seus. Primeiro, tinham levado o pai. Depois, passados alguns dias
de o haverem fechado com a mãe e as irmãs num casarão lúgubre para os lados de
Cheias, tinham-no trazido de volta à casa de família, que por ironia se situava
numa rua chamada da Boa Morte, onde só estavam os criados, um padre que lá
vivia e um homem que tratava dos papéis da casa e das propriedades. Era um
menino de cinco anos e estava só. Vivo e em liberdade, sobrevivia à fúria que
acabava de lhe devastar a família. Pedro nasceu em 16 de Janeiro de 1754 no palácio em que viviam os pais
na encosta soalheira do monte do Castelo de S. Jorge, próximo do Limoeiro. Era
o terceiro filho de João Alorna e de dona Leonor, uma das filhas
dos marqueses de Távora.
Para
quem esperava há sete anos por um rapaz, foi uma dupla alegria. Dona Leonor só
tivera até aí raparigas. As musas da poesia abençoaram o nascimento da
primeira. Leonor, como a sua mãe, foi dotada de uma inteligência excepcional
e de um espírito livre, vivo e cheio de curiosidade. Brilhou nas letras
desde pequenina e ainda hoje é conhecida pelo seu pseudónimo literário de Alcipe. A outra irmã de Pedro, Maria, ou
Mariquita, como carinhosamente a tratavam na intimidade, igualmente dotada mas
sem a excelência da irmã, distinguia-se pela sua grande bondade, alegria e bom
feitio. João Alorna tinha recebido uma educação que não era vulgar entre
os fidalgos daquela época, os quais, na maioria dos casos, desprezavam os
estudos e as letras. Com dezassete anos, o pai mandou-o estudar em Paris, onde
esteve sob a protecção do embaixador junto da corte de França, Luís Cunha, um
dos espíritos portugueses mais brilhantes do século XVIII e tão livre de
preconceitos que fazia vida comum com uma judia holandesa por quem se
apaixonara, causando com isso grande escândalo na corte portuguesa.
À
casa deste diplomata vinham professores do Collège Royal dar lições ao jovem
fidalgo, e foi-se familiarizando com os estudos mais actualizados no campo da
Matemática e da Física, o que lhe permitia discorrer com facilidade sobre as
teorias de Newton e Descartes. Entusiasmou-se particularmente com a ciência dos
astros, depois de ter assistido à conferência em que sábios franceses
recém-chegados de uma expedição aos Andes, no Peru, apresentaram os resultados
das suas observações sobre a forma e diâmetros da Terra, que contrariavam
alguns pontos de vista de Descartes. O diplomata português, muito prestigiado
em Paris, conseguiu que João Alorna fosse tratado com a deferência que
se desejava para um grande nobre de Portugal. Foi apresentado ao rei Luís XV e
à restante família real, que voltaria a cumprimentar quando, três anos mais
tarde, voltou para Portugal. Nessa altura, os infantes encarregaram-no de
transmitir os seus recados e levar lembranças para uma irmã que vivia então na
corte de Madrid. João deixou-se conquistar pela cultura da grande capital europeia
e soube apreciar os costumes e o modo de vida dos franceses. Em França, dizia
ele, talvez com algum exagero, que tudo se tratava com franqueza e não se conheciam as coisas senão quando se falava claro.
Naturalmente,
viria a estranhar depois do regresso o ambiente que veio encontrar em Portugal,
onde imperava um formalismo inibidor e os rodeios se substituíam à
frontalidade. Tropeçando em etiquetas e hábitos que já lhe pareciam bárbaros,
sofreu com a mesquinhez da sociedade portuguesa, onde não via mais que murmurações e uma inveja devorante,
sentindo, ele também, a desconsolação com
que vivem em Portugal todos os que saíram. Era o retrato de um estrangeirado, como se chamava então
àqueles que, em consequência do contacto com outras culturas, ganhavam essa
perspectiva crítica em relação ao seu país natal. João, contudo, não
deixava também de ter as suas reservas. Ainda que fosse um homem das Luzes,
cultivado e, para a sua época, um espírito moderno, havia nele um sentido
aristocrático que acabava por se sobrepor a tudo o mais. Como primogénito e
herdeiro de uma casa da grande nobreza, ele conhecia e aceitava os preceitos
que regiam as tradicionais relações entre essa nobreza e a corte. Apesar de ele
mesmo afirmar que ser vassalo de rei
pequeno é ser verdadeiro escravo, como vassalo se assumia, pois a verdade
era que sem a protecção real não seria possível a perpetuação da sua casa,
objectivo que norteava a vida de todos os primogénitos nobres. Era a regra da
Grandeza, como se denominava o conjunto de famílias nobres, que, a troco de
total submissão ao rei, monopolizavam o seu favor, traduzido em privilégios e
benesses materiais, que lhes permitiam viver com uma dignidade que nalguns
casos se confundia com simples ostentação. E, sem necessidade de demonstração,
ele acreditava, como se fosse um dogma, que a Grandeza era naturalmente, por
nascimento, a classe mais digna de servir directamente o soberano, ocupar os
ofícios próprios da corte e fazer a guerra, comandando tropas, quando tal fosse
necessário. Contudo, não havia em João Alorna soberba ou arrogância, e
ele considerava, e assim o inculcou na família, que a Grandeza tinha a
responsabilidade de dar exemplo às outras classes, devendo cultivar qualidades
como a justiça, a caridade, o respeito pelos outros, e observar os preceitos
humanistas da religião cristã. João, apesar dos interesses que
presidiam aos arranjos matrimoniais daquela época, conseguiu casar por amor. Ao
voltar de França para tomar conta da administração dos bens da casa foi
confrontado com a combinação de um casamento com uma prima, herdeira rica, mas
gorda, feia e mais velha do que ele dez anos. Contrariou, contudo, a vontade
dos pais, argumentando com a desproporção
que havia entre eu e a dona Madalena, trinta e dois anos contra dezanove.
Ele, uma filigrana, comparado com uma estrutura gigantesca e uma gordura quase
disforme. Daí para a infidelidade e a corrupção do matrimónio seria um
passo, dizia ele, porque bem podia resultar daí que o Demónio encontrasse, na
sua desconsolação, matéria que o levasse aos maus caminhos». In
José Norton, O Último Távora, Publicações dom Quixote, Livros de Hoje, Lisboa,
2007, ISBN 978-972-203-398-5.
Cortesia
PdomQuixote/JDACT