O
Nome Maldito
«(…)
O casamento com uma das filhas dos marqueses de Távora, em contrapartida,
nasceu de uma inclinação espontânea: principiou
por simples notícia da formosura e depois com a sua visita, em que achei muito
mais do que me tinham dito. Naquele tempo, o nascimento era para mãe e
filho um transe arriscado. Os médicos, poucos e toscos, serviam para curar as
pessoas, mas quem ajudava as crianças a nascer eram as parteiras, cuja ciência,
se assim se pode falar, era filha da prática. Por isso, o sucesso do parto era
fruto do acaso, e ao mínimo contratempo havia tragédia, morrendo a criança, a
mãe ou os dois. Todos estavam conscientes disso, e para esconjurar o perigo,
além de muitas orações, recorria-se à superstição, e tanto a gravidez como o
parto eram acompanhados de um arsenal de práticas que raiavam a bruxaria. A
mulher grávida não devia trazer qualquer chave na bolsa ou à cintura, pois o
bebé nasceria com o lábio leporino. Se tivesse um gato ao colo, a criança
sairia com as costas peludas. Durante o parto acendia-se uma vela que tivesse
servido na Cerimónia das Trevas de Sexta-Feira Santa e, quando terminasse,
devia limpar-se tudo muito bem, pois, se viesse um gato ou um rato e levasse o
cordão umbilical, a criança estaria fadada para a ladroagem e os maus costumes.
A jovem e bonita marquesa de Alorna não deve ter ouvido estas e outras
recomendações e suportou outras tantas mezinhas. A verdade é que tudo correu
bem e foi, como se dizia, muito feliz, nascendo um bebé perfeito, loiro, de
pele clara, e como não andava gato por ali, não se lhe viram pêlos nas costas
nem tinha pinta de vigarista.
O
acontecimento constituiu uma dupla alegria para a família, pois, sendo rapaz, Pedro
podia garantir pela varonia a continuidade do nome, dos títulos, rendimentos e
demais prerrogativas que integravam o património da casa nobre dos marqueses de
Alorna. Embrulhado em faixas que o transformavam numa espécie de múmia,
enfeitado com rendas e fitas, o bebé foi exposto, para que toda a gente, da
casa e de fora, o pudesse ver. Para além do pai e das irmãs, contentes e
excitadas, vieram as criadas velhas e as novas, incluindo a negra Domingas, os
criados, o capelão mais um frade que lá estava aboletado e ainda os pretos da
estrebaria. Foi posta a mesa com doces e bebidas quentes, pois não tardou que a
notícia corresse, nasceu um anjo, diziam, e afluíssem ao palácio muitos amigos,
sobretudo senhoras fidalgas, já que a maioria dos homens não ligava ao que
consideravam assuntos de mulheres. Sete dias depois, foi baptizado. Não tiveram
de sair de casa, uma vez que o palácio, como a maioria das casas nobres, tinha
a sua própria capela. Foram padrinhos o avô, marquês velho de Alorna, e a
marquesa de Távora, sua avó materna, que esteve apenas representada, por ainda
se encontrar na Índia. Por casualidade tinham ocupado o cargo de vice-rei da Índia,
um a seguir ao outro, os dois avós de Pedro. Primeiro, o avô paterno, de
quem herdara o nome, depois, o marquês de Távora. A marquesa, num gesto
invulgar naquela época, e que demonstrava a sua pertinácia, pediu e obteve
autorização para acompanhar o seu marido. Acompanhando os pais, foi também o
marquês novo, Luís Bernardo, deixando sozinha em Lisboa a sua jovem e bonita
esposa.
Dava
Pedro
os primeiros passos quando os Távoras tornaram a Lisboa, no despontar do ano de
1755. As origens da família Távora
perdiam-se nos confins da história de Portugal, remontando talvez à época
anterior à fundação. Tinham crescido em importância no século XVII ao ligar-se
com a casa dos duques de Cadaval e através desta com a casa francesa de Lorena,
do príncipe Luís I, conde de Harcourt-Armagnac. O prestígio e poder da família
faziam com que os seus filhos e filhas fossem os mais procurados pelas outras
casas nobres para efeitos de casamento, construindo-se assim uma forte rede de
interesses e influências que os Távoras controlavam e da qual retiravam
benefícios. Eram gente soberba e altiva habituada a
viver com aparato e ostentação. A marquesa, herdeira do título que casara com
um primo, também Távora, para manter a varonia, era uma linda mulher, mas
juntava à arrogância um feitio quezilento e colérico. O próprio genro, João
Alorna, logo depois de casar sofreu com o destampatório da
sogra e estiveram quase um ano sem se falar. Aqueles senhores, dizia ele, têm
o prejuízo de que basta o simples nome de Távora para se fazerem formidáveis em
matéria de reputação e de valor e era preciso andar com o prumo na mão porque têm algumas presunções que de qualquer
coisa lhe parece que se lhe agacham todos.
As
suas armas, encimadas pela coroa de marquês e rodeadas pela orgulhosa divisa Quaes
Cunque Findit. Para nós não existem obstáculos, eram
constituídas por um escudo onde se representavam as ondas do mar com um
golfinho no centro, símbolo que para os marinheiros significava salvação e
segurança, mesmo nos mares encapelados. Apesar de tanta ousadia e afoiteza
desenhava-se no horizonte uma tormenta tão rija que nem o golfinho lhes pôde valer,
e melhor fora que aquela viagem da Índia, longa de vários meses, se tivesse
prolongado para sempre e não voltassem a pisar terra de Portugal» In
José Norton, O Último Távora, Publicações dom Quixote, Livros de Hoje, Lisboa,
2007, ISBN 978-972-203-398-5.
Cortesia
PdomQuixote/JDACT