«(…) O marido de Bárbara, que
levara dez penosos anos a ultrapassar as habilitações literárias da esposa, vivera
essa indevida inferioridade literária disfarçando-a penosamente. Não era que fosse
machista, jurara-o ao sogro na conversa pré-nupcial, repetia-o frequentemente à
mulher, mas não é por acaso que se acha que o esposo deve em tudo ser superior à
respectiva consorte, incluindo na idade e na altura, se não como poderá ele fazer-se
respeitar como chefe de família? Convicto destes princípios, procurava manter em
casa o que considerava um necessário equilíbrio de supremacia masculina. Ralhava
severamente com o filho pelas suas noitadas fora e faltas às aulas, mas no
quarto, junto da esposa, após o coitus interruptus
da praxe, era então que Bárbara mais se lembrava das suas paixões desiludidas,
perdidas: onde estavam os beijos ardentes que punham as mulheres ofegantes e
prontas à rendição na cama?, sorria das rapaziadas do filho com orgulho e comentava
que com os homens era assim, cresciam mais penosamente porque tinham uma necessidade
de se afirmarem, de procurarem a liberdade, necessidade que as mulheres não
tinham. Bárbara não via bem qual era essa liberdade, sabia que não havia liberdades
nenhumas no país em que vivia, sentia o medo à sua volta, nos dias em que estava
mais enervada chegava a vê-lo como uma sombra que rodeava as pessoas, achava que
os homens gastavam tolamente as forças que tinham, insistia com o filho para que
se alimentasse bem. Verdade seja dira que as liberdades conjugais que o marido
praticava não eram muitas: um jantar por ano com os colegas do serviço, e fora isso
mais nada, que era um homem caseiro. Não costumava ir ao café. Aí é que estão os
bufos todos, comentava. Está cheio deles. Fingem que estão a ler o jornal, ouvem
tudo, denunciam. Nem que sejam coisas ditas na brincadeira, anedotas. Conheço
vários que se desgraçaram por andar aí nos cafés a dar à língua, a fazerem-se de
engraçados. Esses espiões de mer… têm que apresentar serviço para justificar o que
ganham; devem ser pagos à comissão, um tanto por denúncia. Bárbara cozinhava, limpava,
lavava, passava a ferro. Punha em ordem um universo maior, agora que habitava em
Lisboa. As compras, as idas à rua, às quais a obrigava a lida da casa, pareciam-lhe
um gesto disciplinador do ferver urbano, o tecer de conscienciosa teia que mantinha
o seu mundo anichado, fechado, mas defendido, no bulício citadino. Às vezes pensava
no pai, que já morrera, e pensava que lhe traíra as esperanças. Emocionava-se, chorava
um pouco; começava a preparar o jantar, cozinhava com devoção e sentia que a sua
própria esperança não morrera, só que não tinha onde a colocar, a não ser no esmero
caseiro, no apuramento dos refogados e nos temperos. Chegou o momento em que a ameaça
de ir à tropa começou a rondar o filho, a aproximar-se dele a passos largos e inexoráveis.
A tropa era fatalmente aquela guerra lá longe, no meio de selvas e mosquitos, crocodilos
e cobras venenosas. Bárbara, que herdara do lado da mãe algumas crenças
religiosas, passou a rezar muito. Não ia à igreja nem punha velas em altares de
santos. O seu letrado pai orgulhava-se não só de ser anticlerical, o que era bastante
comum na vila do Sul onde nascera, mas também de ser anti-idólatra, iconoclasta.
Bárbara habituara-se à ausência de imagens e de ritos, orava de pano de pó na
mão, ou enquanto fazia a cama, ou cozinhava. Virgem Maria, protege o meu menino.
Sabia que deveria rezar a Deus, era Ele quem mandava em tudo, quem criara tudo,
mas achava-O muito distante, muito incompreensível, muito parecido com os homens.
A Virgem era mãe como as outras mulheres, exceptuando aquela parte de não se ter
deitado nunca com homem algum, de ter tido um filho por arranjo directo com Deus,
o que Bárbara considerava com alguma inveja e secreto orgulho. Uma mulher que escapara
à poluição geral do género humano e aos escravizantes processos biológicos das mulheres.
Que tivera um marido casto, sem paixões, mas sem coitus interruptus; sem prazeres, mas sem promessas. Que o mundo seja
mais suave, mais luminoso, pedia à Virgem enquanto limpava os vidros; que acabe
a pobreza e a inveja, pedia quando cozinhava; que acabem as guerras, sussurrava
no meio do ruído do aspirador; que o meu filho não vá à tropa, concluía no fim de
cada dia, repetia em cada manhã. Aquela permanente conversa com a Virgem fazia-lhe
bem. Entretinha-a, dava-lhe um lugar mais alto para a esperança, um lugar onde os
seus gestos quotidianos, repetitivos, tinham maior sentido. Se a Virgem
existia, ou se fora aquela a sua verdadeira história, não era assunto em que lhe
interessasse meditar. Sentia que algures se adensam os pedidos, as orações e os
pensamentos, como em nuvens se acumula a água da Terra evaporada. Sabia-o,
adivinhava-o. Olhava o céu e suspirava. Da herança religiosa materna vinham-lhe
também os anjos da guarda. Podia ser que sim, que andassem por aí a esvoaçar sendo
raramente vistos». In Maria Isabel Barreno, As Vésperas Esquecidas, Editorial Caminho,
Lisboa, 1999, ISBN 972-211-248-1.
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