O
amigo da rainha
«(…) Os rapazes partiram e dois
deles tiveram coragem suficiente para ir até à casa de Matilde, que ficava na
Rua do Postigo, por detrás da Igreja de Santa Maria Madalena e já perto da muralha.
Entretanto, Antónia passou pela antiga Porta da Graça e regressou a sua
casa, que ficava dentro da cerca velha; entrou em casa e pediu um copo de água
à criada. Sentou-se numa cadeira na sua câmara, próximo do oratório. Tomai,
senhora, está fresquinha, e com um pedacinho de açúcar e um cheirinho a canela,
como é de vosso gosto. Obrigada. Não ides à missa? Não. Estou cansada e com minha
idade Deus Nosso Senhor deve perdoar-me uma reza a menos. Quereis que reze aqui
com vossa senhoria? Não estou com cabeça para orações. Preciso de sossego. A criada
estranhou. mas obedeceu e deixou sua ama sozinha. Antónia fechou os olhos. Sentiu
saudades. Em sua viuvez carregava todos os dias a tristeza de lhe faltar Álvaro,
o seu grande amor, com quem pudera viver mais de trinta anos, até que a peste o
levara, ia para quinze anos. Mas o toque dos sinos e a notícia dada por Jaime tinham-lhe
recordado o outro homem bom que ela conhecera em sua vida, o seu marido, o nobre
Vasco Melo, o amigo secreto da rainha dona Joana de Castela.
Antónia Sousa nascera em Moura, no
ano de 1485. Filha única coubera-lhe a herança do morgado do pai, quando este
falecera; tinha então vinte e cinco anos. Seu progenitor perdera o siso em seus
últimos anos de vida e não se preocupara com a continuidade da casa, mas Antónia
acautelara os seus interesses, o que não fora fácil e requerera um ardil próprio
de quem ama loucamente e que, ao mesmo tempo, dispõe de uma amizade extraordinária.
Ela apaixonara-se por um plebeu: Álvaro Pires, natural da Amareleja, filho de um
taberneiro, cinco anos mais velho, coxeava por causa de um aleijão que ganhara
na guerra em África. Não era bonito e era pobre, mas o mundo transformava-se quando
estava com ela. Amavam-se em segredo, com enorme discrição, mas era uma paixão
proibida. E com o envelhecimento e o desatino do pai, el-rei preparava-se para
intervir, dando-lhe noivo de condição adequada, que se tornaria, de facto, no
novo senhor do morgadio. Pelos anos de 1508 e 1509 ela desesperara, mas não
desistira.
Passara sua infância na corte
ducal, em Beja, nos tempos em que el-rei João II se sentava no trono de
Portugal; a pequenita fizera amizade com alguns dos cavaleiros do senhor Manuel,
particularmente com um, quinze anos mais velho, Vasco Melo era conhecido de
todos pelos seus trejeitos incríveis e era um brincalhão. Ao contrário da maior
parte dos seus a, entretinha-se com as crianças; fazia-lhes caretas, exagerava
os tiques, contava-lhes histórias extraordinárias sobre os mouros de África e
os negros da Guiné. Vasco ganhara uma particular afeição por Antónia, depois de
o destino o ter tornado o seu salvador em vários apertos: ajudara-a a descer de
uma árvore a que ela só soubera trepar; livrara-a de um cão façanhudo a que ela
pisara a cauda inadvertidamente; estancara-lhe o sangue que escorria pela perna
depois de se ter embrenhado num silvado; e pusera a correr um fidalgote
estúpido que assediava sua honra. Pouco depois da morte do príncipe Afonso,
Vasco partira, e só reaparecera passados dois anos: ela crescera entretanto,
mas ele não a esquecera, e no primeiro encontro ofereceu-lhe uma imagem de
Santa Clara que lhe trouxera de presente de Itália. Com a subida ao trono de
Manuel I, Vasco ganhara uma vida errática, mas sempre que se cruzava com a
Antoninha tinha um mimo para sua amiga». In João Paulo Oliveira Costa, Círculo de
Leitores, Temas e Debates, 2012, 978-989-644-184-5.
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