De acordo com o original
«(…) Vamos lá! Vamos lá!
As pás, ó tu que cantas? Deixa-me por ahi alguma, que eu depois te ensinarei,
ouviste? Que faz ahi no chão esse rasouro,
ó coisa? Olha p'r'o que estás a fazer, tu: esses saccos que fiquem bem atados. O
criado, que ia abalar com a carrada, perguntou, já de aguilhada no ar, se era preciso mais alguma coisa. Não, pódes ir.
Ouves? Lá em casa que tenham a ceia a horas. Avia-te. Ouves, Francisco? Não
piques os bois, a carrada é valente. A passo, deixa ir os animaes a passo.
Vae-te.
Como o carro chiava,
levantou a voz para dizer: Olha, descarrega na tulha do meio. Na tulha do meio,
não ouves? Os bois para o lameiro. Mas o Francisco apontou dois saccos que
ficavam: seria preciso vir por elles? Não vale a pena, lá irão. E depois, para
aquella gente, observou que bem sabia elle quem os levava, aquelles dois
saccos... Com mil demonios! Apostar que vocês não adivinham? Elles sabiam
lá?... Quem quer podia levar os dois saccos, olhem agora! O Sultão, sabem? O Sultão! Esse é que os levava. E digo-vos então que valia o dobro a
colheita, assim me Deus salve! Alguns riram da lembrança. Tinha graça que a scisma
do animal não lhe passava nem á mão de Deus Padre! A modos que isso é já mania,
ó sr. Thomé? Nisto, porém, o lavrador soltou um oh! de surpreza. Voltaram-se todos que era? Na estrada que a eira dominava, um homem ia passando, a
cavallo. Vocês não querem vêr, ó rapazes?!, perguntou o lavrador, fazendo-se pallido.
Aquelle burro, hein? Se não é o Sultão
é o diabo por elle...
Recordaram: estrella
malhada na testa, a mão direita branca... É elle, com um milhão de diabos! Não
ha que vêr! E aquelle é o ladrão! E cuspindo nas mãos, e arregaçando mais as
mangas da camisa, arrancou, d’um abanão, o cabo d’uma espalhadoura e botou a fugir direito á estrada. Prestes ouviu-se um
berreiro, as mulheres do rancho em alarido: Que o mata!, gritavam todas. Ai que
o mata! Acudam! Ai a desgraça! Nem a alma lhe deixa! Acudam! Os homens deitaram
a correr atraz d’elle, affluia gente de todas as bandas da eira, os cães
ladravam. Então, sr. Thomé?, olhe que se perde, sr. Thomé!, diziam-lhe, já agarrados
a elle. Largue o cabo, que se desgraça! Tudo se faz a bem, sr. Thomé, largue
vossemecê o cabo! Qual bem nem qual diabo! Qual larga? Arreda! Racho-lhe as
costellas, mais a vocês, se me não largam! Arreda! E esbracejava furioso,
levando-os de roldão, agarrados a elle mais ao cabo. Chegou a ferir um, os
outros desanimaram por instantes. Vê, sr. Thomé?! Não via nada, não queria ver
cousa nenhuma! Arreda! E n’um rompante de ira, abrindo brecha com um sarilho, de um pulo saltou á estrada,
aos tropeções nas pedras que encontrava, mal se equilibrando.
Abaixo!, intimou. Você é
um ladrão! Um quê? Um ladrão! É meu esse burro! Hei-de matal-o aqui, seu
patife! Deixem-me! Larguem-me! Ha-de ahi ficar estendido, como um cão! E no
meio da malta em alvoroço, com a arreata do burro na mão esquerda, e na direita
o minacissimo cacete, berrava que o
deixassem, que ia tudo razo, com
seiscentos milhões de diabos! Seguiu-se altercação, vieram razões de parte
a parte, insultos. Já lhe disse que você é um ladrão! Ladrão será você!, tornou-lhe
o outro já de pé, avançando de punhos cerrados. E não m’o diga outra vez, que o
racho!
Afflictas, algumas
mulheres voltavam-se, de mãos postas, para a capellinha proxima, rogando o
soccorro da Virgem. O lavrador entrava de tremer como varas verdes,
desfigurava-o a raiva, uma saliva muito branca bordejava-lhe os cantos da
bocca. Pela camisa rota, via-se-lhe já um pedaço de hombro. Tinham, alfim,
conseguido arrancar-lhe o cacete, mas agora esbracejava, punhos no ar sobre
aquellas cabeças em desordem. Já, para uns certos do grupo, o homem do burro se
desculpava: tinha-o comprado a uns
ciganos, fossem lá adivinhar que o burro era roubado... Vê, sr. Thomé?,
acudiram logo uns poucos. O homem não tem culpa. E gritavam-lhe aos ouvidos: Não
tem culpa! Comprou o animal na boa fé. Vês-ahi está! Mente!, objectava
incredulo o Thomé, cada vez mais irado. Mente!
Mente?!, perguntava o
outro de lá, assanhado. Como um judeu!, cuspia-lhe da outra banda o Thomé. De
modo que para o convencerem, foi preciso afinal leval-o quasi á má cara,
chamar-lhe homem de rixas, despropositado, bulhento. Elle então, abrindo os
braços como se fosse para nadar, socegou um pouco, amainou, prometteu levar
aquillo com paciencia, ás boas. Chegou quasi a pedir desculpa, limpando com a
manga branca as bagas das camarinhas. Mas tinha perdido a cabeça, que lhe
queriam? Chegou-se por fim a um accordo. Sim, senhores, accommodava-se, mas punha
uma condição: largasse elle o burro, e o burro é que havia de resolver... Serve-lhe
o contracto? Qual contracto? Mau! Larga-se o burro, você entende?, deixa se o
burro ás soltas. Depois, é p’ra onde elle fôr. Se o burro larga p’ra traz, lá p’r’as
bandas d’onde você vem... Você d’onde vem? Dos Casaes. Pois ahi está. Se o
burro tomar p’r’os Casaes, o burro fica seu... E tomando direito á aldeia, é do
sr. Thomé, concluiram alguns do grupo, conciliadores. Nem mais! Serve-lhe
assim? Diga se lhe serve assim». In Trindade Coelho, Os Meus Amores, Contos e
Baladas, Projecto Gutenberg, ISSO 88589-1, 2006, produção de Carla Ramos e
Ricardo Diogo e edição de Rita Farinha, Os Meus Amores, 2ª edição, Lisboa,
Livraria de António Pereira, 1894.
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