«A
existência, no seio da comunidade portuguesa, de grupos numerosos adictos à
crença judaica, constituiu, desde os tempos remotos da nacionalidade, e ainda
antes d’ela definitivamente formada, um factor importante de desequilíbrio
social, a que, umas vezes o poder ocorria como leis de excepção, outras vezes o
desgosto popular opunha o saque, o incêndio, a matança, como elemento
compensador; leis e explosões de selvagem violência bem depressa esquecidas,
porque a pertinácia da raça estranha podia mais, na sua passividade, que o
árbitro empírico dos governos e o furor intermitente do populacho. Mais antigos
na Península que os mouros, os godos e os romanos, os judeus iam buscar, às
épocas longínquas da bíblia, a origem do seu assento no país e, ora alegavam
que os primeiros da sua estirpe tinham vindo, trazidos da Babilónia, por
Nabucodonosor; ora pretendiam que já antes, no tempo de Salomão, fora a Espanha
vassala e tributária do grande rei. Se bem careçam de fundamento histórico
histórico tais razões, com que, desde o século XIV, os judeus perseguidos
reclamavam o direito do viverem na terra que seus maiores por tantos anos
tinham habitado, certo é que antiquíssima foi a dada da sua vinda, e precedente
a quaisquer memórias, tradições ou monumentos existentes na antiga Espanha.
Não
parece temerário supor terem vindo os primeiros nas armadas dos fenícios, seus
vizinhos, e que a dispersão final da raça, após a tomada de Jerusalém pelos
romanos, encaminhasse muitos outros para junto dos seus irmãos, que na Ibéria
hospitaleira e fecunda prosperavam. Mas, já antes d’isso, Roma, como centro da
civilização e do comércio no mundo antigo os atraía, e d’ali, impelidos pelo
instinto nómada e pelo amor do lucro, reemigravam para as terras da bacia do
Mediterrâneo, até às colunas de Hercules, tal como hoje para a América e mais
países, à cata de fortuna, sendo de crer que, também por esse meio, as colónias
da sua raça na Espanha consideravelmente aumentassem. Destes primeiros tempos
data certamente o antagonismo dos nativos. Astutos, pertinazes e ousados, os
adventícios possuíam já as qualidades das raças afeitas à adversidade. A emigração,
com as longas viagens cheias de perigos, em mal aparelhadas naves, não era como
hoje facto banal, sim escola de valor e de energia.
Os
aventureiros de fora possuíam de certo mais rija têmpera que os naturais,
habituados ao aconchego do viver sedentário; e os que vinham fugidos à fúria do
vencedor cruel, já deixavam pelo caminho os fracos, sucumbidos à dureza do
cativeiro e às misérias da peregrinação. Pode-se dizer que eram criaturas de
excepção, portadores das melhores energias da raça, essa que, ao cabo de
inúmeros labores, chegavam enfim à nova terra, nos confins do mar conhecido». In
J. Lucio D’Azevedo, Estudos para a história dos cristãos novos em Portugal,
Revista de História nº 2, publicação trimensal, Lisboa, Livraria Clássica
Editora 1912-1928, pp. 65-73, 1912.
Cortesia
RHistória/JDACT