«(…) O que na obra de Dalila se
propõe é, em primeiro lugar, o reconhecimento do inconsciente colectivo como um
mestre espiritual (esse inconsciente, ou mestre espiritual, falará aqui pela
voz de dois de seus poetas, absolutos, Camões e Gil Vicente. e
pela voz dos seus dois amantes absolutos) e em segundo lugar, a identificação
do eu individual ao eu pátrio, como eu supremo. Na cultura portuguesa,
assim, cada um destes mantras, corresponderá sintética, arquetípica e
simbolicamente às experiências do amor, do conhecimento, da história e do céu.
Essas fórmulas serão modos de comunicação de uma via de realização individual e
colectiva que culmina numa identificação final. Estes quatro mantras sintetizam
aqui a alma portuguesa, isto é, aquilo que na alma portuguesa a move e conduz
para o ultrapassamento e superação de si própria, patente em estados-limite de
ruptura, de levar o possível ao impossível. A memória até a saudade, a vida
até a morte, o desconhecido até ao conhecido. conduzir, desenvolver uma
essência ou existência, ou melhor, uma essência numa existência, ao máximo da
sua potencialidade, mesmo que humanamente, por essa inserção nele do ilimitado
divino, o sacrifício seja total, como dom de vida na morte.
Uma outra temática oriental,
hindu e budista, que originalmente surge na teorização de Dalila é a de Maya,
definido como o modo de ocultamento do uno no múltiplo e modo de apresentação
lúdica desse mesmo uno sob a forma de múltiplo, isto é de aparência e
metamorfose daquilo que por natureza é essencialmente imutável. Pela saudade seria
possível o acesso à coincidência dos contrários na terra, isto é, num modo de
existência espacio-temporalmente condicionado se acederia à visão do Ser dos
seres, o impassível e intocável. A utilização do conceito de maya por
Dalila é algo dualista, ao procurar ver subjacente à ilusão da multiplicidade
uma unidade real e verdadeira. Essa visão seria possibilitada por um exercício
de despojamento e ascese. Ao utilizarmos o conceito de dualismo para certos
aspectos da teorização de Dalila ou para determinados pontos da sua
interpretação do Budismo (ou construção de um neo-budismo), teremos sempre de
ter em atenção o quanto Dalila preza o monismo espinosista, a tradição da
mística unitiva e o próprio paganismo de raiz celta, que vê sobrevivente e
actuante na peculiar tradição cristã portuguesa: a acção da saudade será
ainda de dimensão funda e vastíssima na humanidade: como acção ou poder de
inserção do paganismo dentro do Cristianismo (...) A saudade
manifesta-se (...) num contexto de espiritualidade nacional de
formulação cristã: mas para ela trazendo já de trás, do fundo dos tempos, do
seu passado imemorial, um outro húmus, como espiritualidade pagã, a que nega o
tempo como corrente irreversível e linear.
Dalila anuncia que por fim se
vencerá a morte, amando e assumindo a vida, mediante a compaixão da saudade,
contraposta à do Budismo. Não logrando desenvolver um tema tão importante
como o da compaixão, Dalila denuncia aqui o que já antes havia sugerido, que na
saudade estaria presente um amor do mundo que no Budismo se reveste do carácter
de uma fuga desse mesmo mundo. Noutro passo, Dalila afirma que a compaixão
budista é de todo falta de sentimento e feita na sua ausência, enquanto
que a saudade seria um amor humano, repleto de sentimento e feito através dele.
Desvalorizando assim a compaixão budista, Dalila irá, todavia elogiar a noção
de karma. Deste modo, a autora detecta na visão saudosa do rei Duarte I, a
superação do nível moral-teológico cristão e uma aproximação à visão oriental
do karma, que considera como de tipo antropo-cosmológico. Assim, em vez
de procurar estabelecer normas de conduta de forma coactiva e impositiva, a
teoria da saudade procuraria antes reconhecer a causalidade mais profunda a que
o homem estaria na sua existência sujeito, enquanto inscrito numa ordem
cósmica. Por tudo o que já foi dito, Dalila afirma que ao abrir para um plano
superior do ser, para uma supra-consciência, a saudade só tem par
nas formas mais altas da sabedoria oriental e nas dos raros povos actuais de
mentalidade dita primitiva, ainda subsistentes à face da terra; ainda usados e
conhecidos à face da terra; ainda usados e conhecidos também outrora na
sabedoria ocidental, nas suas culturas tradicionais. Estas formas contudo,
hoje perdidas, só seriam fragmentariamente acessíveis pela poesia, religião ou
magia. A cultura ocidental, marcada por dicotomias irredutíveis, poderia ser
renovada num sentido libertador mediante a recuperação desses fragmentos, de
que é expressão maior a poesia saudosa de Camões, dotada de uma fecundidade
infinita nos tempos, (...) a par dos Hinos Vedas especulativos, da filosofia
dos pré-socráticos, dos Tantras e Sutras do Budismo, dos escritos do hassidismo...»
In
Rui Lopo, A leitura do Budismo na obra de Dalila Pereira da Costa, Estudos,
Universidade de Lisboa, Associação Agostinho da Silva, Revista Lusófona de
Ciência das Religiões, Ano VI, 2007.
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