«Há uma idade em que
se ensina o que se sabe; mas vem em seguida outra, em que se ensina o que não
se sabe: isso se chama pesquisar».
In
Roland Barthes
«(…) Embora tenha se pautado sempre por construir uma espécie
de poesia sem confessionalismos, a impessoalidade e o distanciamento não
anularam a matéria-vida da qual os poemas estão impregnados, sobretudo das
imagens extraídas da natureza e sua dinâmica, configurando uma belíssima
síntese de um saber, da poesia como forma de acesso ao real, tendo sido
arrancada da experiência mais intensamente contemplada e vivida, decalcando um
conhecimento essencial capaz de universalizar-se na trágica consciência de que
alguns elementos impossibilitadores da plena realização humana sempre
permanecerão como limitações, a começar pela linguagem, nunca dando conta do
que sentimos, rememoramos ou imaginamos. Com efeito, mesmo sendo detentora de
uma produção poética de grande envergadura, que se estende num amplo arco que
vai da poesia lírica, como já dissemos, passando pelo romance, indo até à
tradução em diversas línguas e ao ensaio de natureza académica, a poeta
não foi ainda suficientemente estudada, apesar da cena literária portuguesa
tê-la reputado como uma das mais altas vozes da contemporaneidade, haja vista
ter sido contemplada com quase todos os mais importantes prémios literários de
Portugal. Foi sobremodo reconhecida nos últimos anos da sua existência, no qual
demonstrou nos seus derradeiros livros publicados um preciso domínio da arte da
manufactura poética.
A
trajectória da sua poesia se inscreve de maneira muito interessante,
fincando-se de maneira singular e bem distinta da poesia produzida no seu
entorno, pois partindo de textos bastante herméticos, estruturados numa
depuração formal e num rigor sobremaneira influenciado pelos movimentos de
vanguarda, que intentavam uma renovação da linguagem poética por meio do
retorno ao significante, da palavra em sua carnadura concreta, a preocupação de
ressaltar a palavra isolada ou em sintagmas mais minimalistas, tais como
propugnava a poesia Concreta ou Espacial, que se caracterizava por ser
antidiscursiva, evidenciando o signo linguístico quase sempre de maneira
sintética ou isolada. Após essa fase, Fiama Brandão encerra a sua obra
com livros nos quais podemos encontrar uma poesia de factura simples e com
levado nível de reflexão acerca do homem e sua presença no mundo. Assim sendo,
embora tenha se expressado de maneira ostensivamente engajada nos temas que
representavam as inquietações do seu tempo, sempre numa perspectiva filosófica
e universalizante, a autora nunca buscou um registo panfletário e
excessivamente explícito com relação aos referentes manuseados em sua obra. Com
efeito, mesmo tratando de temas de natureza histórica ou mitos da nacionalidade
portuguesa, a poeta os aborda sob novo prisma, quase sempre crítico, nunca se
deixando seduzir pela mesmice ou pela gramática mítica, que anseia por ser
ritualizada e perpetuada, fortalecendo os mecanismos dos processos ideológicos
no Imaginário. O fenómeno poético pode ser entendido não apenas como detentor
não apenas de uma específica organização da linguagem, voltada sobre si mesma,
como é, mas também é capaz de reter nas suas malhas elementos subtilmente
denunciadores de imagens arquetípicas integrantes do património cultural da
humanidade. Ora, é justamente a partir desses múltiplos semantismos contidos
nas imagens articuladas nos poemas que podemos afirmar a poesia como um lugar para onde convergem, como se houvesse
uma espécie de força centrípeta na qual as imagens são atraídas com a intenção
de compor um sistema homogéneo de elementos: o conjunto de invariantes
antropológicas universais.
Tudo o que viemos até agora dizendo nos leva à seguinte
conclusão: da mesma maneira como é possível pensar por palavras, também é possível
pensar por imagens. A partir do momento em que se organiza um texto,
não tendo apenas como suporte a linguagem verbal escrita, como fomos
habituados, levando-nos a um esforço de abstracção tendo como ponto de partida
um sistema secundário (o poema, o livro de poemas) estruturado já a partir de
um sistema primário (a linguagem verbal), ao fazer uso do ikon e
do logos simultaneamente, a metáfora permite que uma imagem ou
uma constelação de imagens aflorem com mais nitidez na consciência. Mas, se
dermos uma olhada na história da escrita, constataremos que as letras foram
decalcadas inicialmente de imagens pintadas: pictogramas, hieróglifos, ou seja,
o poema devolve às palavras a força original de ter sido arte plástica, de
ter sido ícone, antes de se tornar um código sistematizado, e instituído
convencionalmente, formado por signos abstraídos de forças ou elementos
advindos da natureza contemplada e vivenciada pelos nossos antepassados.
Porém, o mais importante de tudo sobre o que acima discorremos
é o facto de a imagem literária ser o lugar privilegiado da organização e da
transmissão das imagens depositadas no imaginário colectivo, visto que ela, a
imagem literária, é um veículo sem peias nem freios de ordem alguma, seguindo a
sua própria gramática, que é a de articular sentidos sem se submeter ao que se
encontra instituído como lógica aristotélica-cartesiana. Prova dessa altiva
liberdade é a maneira como a poesia contemporânea trata a gramática normativa
ou a língua vernacular. A poesia pouco está ligando para essas duas
instituições, com seus limites impositores de uma determinada maneira de enunciação
ou comportamento. Quem sabe, a poesia contemporânea não tenha esquecido a
criativa e frutífera lição do linguista Roman Jakobson, conclamando ao
enlace dos dois domínios, Poética e Linguística, a juntarem seus conhecimentos
visando à análise e interpretação da poesia. Mesmo porque a Linguística, como
campo do conhecimento que tem como objecto de estudo as línguas naturais, nunca
teve pretensões de prescrever nada, mas apenas de descrever, instaurando-se
como um espaço de liberdade para as diversas variantes de uma mesma língua,
visto que as considera todas num mesmo patamar, quer seja uma língua de um país
da Europa, quer seja a língua dos índios Yanomamis, habitantes dos
lugares mais recônditos da floresta amazónica». In Márcio Lima Dantas, Esboço para um possível Ensaio sobre Fiama Hasse Pais
Brandão, Departamento de Letras da UFRN, Tópicos de Literatura
Portuguesa II, Wikipédia, Poesia 61.
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