segunda-feira, 19 de outubro de 2015

A fala perfeita. Fiama H. P. Brandão. Um diálogo íntimo com a realidade. Vivian Steinberg. «’Fiama: está entre a palavra e as coisas’, como escreveu Eduardo Lourenço no prefácio à sua Obra Breve. A partir dessa reflexão, podemos dizer que os textos se dobram sobre si mesmos, fazendo do exercício da escrita o objecto de reflexão»

Cortesia de wikipedia

Resumo
«Este trabalho tem como objecto de estudo a investigação da poética de Fiama Hasse Pais Brandão buscando entender o que é fala perfeita para a autora. Analisamos minuciosamente o poema Teoria da Realidade, tratando-a por tu, que é toda uma poética, e o relacionamos com a sua obra, demonstrando assim uma coerência em seu projecto poético. O poema analisado faz parte da série Poéticas, do livro Cenas Vivas de 2000. Nesse poema há um desdobramento do sujeito poético que persegue a sua voz desde seus balbúcios. Podemos dizer que o sujeito da enunciação nos conta como a sua voz poética apareceu, desenvolveu, adquiriu a fala perfeita e a ofereceu aos leitores. Desde a publicação de Morfismos, em 1961, que a autora preocupou-se em resgatar a língua da estreiteza de seu uso comum e em dar autonomia à linguagem, buscando o que chamou de poesia / substantivo, assim se filiando à tradição da modernidade e especificamente a Mallarmé. Os seus poemas são testemunhos de tudo o que foi escrito e lido por ela, desde as grandes epopeias e a Bíblia, à tradição anglo-germânica, aos grandes poetas americanos e à tradição portuguesa. Fizemos um percurso em sua obra perseguindo poemas que são poéticas, ou seja, que o tema é a própria poesia para descobrir como se dá a visão e o conhecimento que Fiama tem do real e do poético. Constatamos que fez uma opção pela realidade. A matéria poética de Fiama pertence à terra, há uma preocupação em desvendar o real. Podemos constatar essas questões, a partir da nossa leitura dos poemas de Obra Breve, Poesia Reunida. Selecionamos um percurso poético que desaguou em Teoria da Realidade tratando-a por tu, o que nos mostrou a intimidade que adquiriu com a realidade, além de nos revelar como sua voz poética desabrochou».

«Tu, realidade, és nome de ti e do que os poetas fundam, depois de terem a fala perfeita» In Fiama Hasse Pais Brandão

«A fala perfeita é uma expressão retirada do poema Teoria da Realidade: tratando-a por tu, que foi publicado em Cenas Vivas (2000). Faremos uma análise minuciosa dele para compreendermos como se dá a fala perfeita da voz da enunciação de Fiama Hasse Pais Brandão e qual é sua relação com a realidade. Temos a consciência que esse poema produz múltiplos diálogos com sua obra e com a de outros poetas. Mostra-nos a coerência do percurso poético desenvolvido pela Autora como um todo, desde a publicação de Morfismos, em 1961. Fiama, em sua trajetória poética, principia pela palavra condensada, pela palavra substantivo. Amplia o sentido convencional da palavra, na esteira de Mallarmé. Acentua essa passagem de autor em autor. Como ela pronunciou em 1961: A forma poética é a destruição do hábito linguístico. Na sua poética, percebemos, e ela mesma se pronuncia em relação às vivências de sua vida, que há a experiência da leitura-convívio, ou seja, além das vivências da sua vida, há a experiência da leitura profunda, a que ela denomina leitura-convívio.
Aquiesceu perante ela mesma que vivia como Eu lírico e o enreda em outros autores poetas, transformando os seus poemas numa via de mão dupla: dos poetas para ela e dela para os poetas. Lápide e versão indistintamente. O anterior ou é uma lápide (tudo está aí, fixo) ou, então, uma versão, uma interpretação, em mim, para sempre. Assim, confesso: eu escrevo como os poetas, e com os Poetas, escreve a autora em A minha poesia e referências literárias. O que não a impede de clamar: Flosa, mãe, mar, em que versos/ somente sois as palavras minhas? Percorre um caminho singular, relaciona a realidade empírica com a realidade do poema, não perde esse referencial: o poema é realidade também. Dito de outra forma: Esse modo hipotético de estar entre a realidade do mundo e a realidade do poema. Ou ainda: Fiama: está entre a palavra e as coisas, como escreveu Eduardo Lourenço no prefácio à sua Obra Breve. A partir dessa reflexão, podemos dizer que os textos se dobram sobre si mesmos, fazendo do exercício da escrita o objecto de reflexão, nas palavras de Jorge Fernandes Silveira […]

«Este tecido encadeia-me. Eu estou atenta
ao tecido da minha vida. (...)
O contexto que de novo amanhece
é o que me contém. Confirmo que o amanhecer
é já um conflito antigo e ordenado, e que eu posso ser
personagem existente».
In Fiama Brandão

Contexto histórico-literário da obra de Fiama Hasse Pais Brandão
Podemos falar em contexto do poeta enquanto autor e leitor de outros escritores situado num determinado momento literário e social, capaz de filtrar ou rejeitar as vivências espaço-temporal. Por isso, escreveremos uma breve apresentação da autora. Em quase toda a obra de Fiama Brandão (1938-2007), as estações, a luz, as mudanças nas árvores e flores, os pássaros relembram a quinta em que morou na infância e depois na maturidade, Vivenda Azul, com o tanque, os caramanchões, a vasta gaiola contendo dezenas de periquitos, o lago com os peixes, os azulejos do terraço, em meio ao pomar, ovelhas, flores, perto do mar, em Carcavelos, Cascais, distrito de Lisboa. A formação escolar e universitária despertou, em Fiama, um conhecimento das literaturas inglesas e norte-americanas e, mais tarde, da literatura germânica. Estudou no St. Julian's School, colégio inglês, de elite, em Carcavelos, o que lhe deu uma base para os estudos de língua e literatura inglesa. Frequentou o curso de Filologia Germânica na Universidade de Lisboa, até ao terceiro ano, onde se familiarizou com as letras de língua alemã. Traduziu Robert Lowell e Novalis; Brecht, enquanto ainda estava proibido durante o governo salazarista; Cântico dos Cânticos, Artaud, entre outros. O teatro esteve presente em sua formação como escritora, pois foi uma das fundadoras do Grupo de Teatro de Letras, junto com Luiza Neto Jorge, Gastão Cruz, José Silva Louro e outros. Em 1965, o grupo surgiu na sequência do Círculo de Teatro de Letras, uma tentativa encoberta de criar uma associação de estudantes na faculdade, durante o Estado Novo, quando estas eram proibidas. Escreveu, por exemplo, Os chapéus de chuva, censurada, depois publicada em 1961. Ganhou o Prémio Revelação da Sociedade Portuguesa de escritores, por essa peça de teatro. A experiência no teatro lhe deu um olhar cénico, que visivelmente se manifesta nos livros Área Branca e Cenas Vivas» In Vivian Steinberg, A fala perfeita. Fiama H. P. Brandão, Um diálogo íntimo com a realidade, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, Tese de doutoramento em Letras, Programa de pós-graduação em Literatura Portuguesa, 2011, S. Paulo.

Cortesia de FFLCHumanas/JDACT