«Antes que venha o
Inverno e disperse ao vento essas folhas de poesia que por aí caíram, vamos
escolher uma ou outra que valha a pena conservar, ainda que não seja senão para
memória. A outros versos chamei eu já as últimas recordações da minha vida poética.
Enganei o público, mas de boa-fé, porque me enganei primeiro a mim. Protestos
de poetas que sempre estão a dizer adeus ao mundo, e morrem abraçados com o
louro, às vezes imaginário, porque ninguém os coroa. Eu pouco mais tinha de
vinte anos quando publiquei certo poema, e jurei que eram os últimos versos que
fazia. Que juramentos! Se dos meus se rirem, têm razão; mas saibam que eu
também primeiro me ri deles. Poeta na Primavera, no Estio e no Outono da vida,
hei-de sê-lo no Inverno, se lá chegar, e hei-de sê-lo em tudo. Mas dantes
cuidava que não, e nisso ia o erro. Os cantos que formam esta pequena colecção
pertencem todos a uma época de vida íntima e recolhida que nada tem com as
minhas outras colecções. Essas mais ou menos mostram o poeta que canta diante
do público. Das Folhas Caídas ninguém tal dirá, ou bem pouco entende de
estilos e modos de cantar. Não sei se são bons ou maus estes versos; sei que
gosto mais deles do que de nenhuns outros que fizesse. Porquê? É impossível
dizê-lo, mas é verdade. E, como nada são por ele nem para ele, é provável que o
público sinta bem diversamente do autor. Que importa? Apesar de
sempre se dizer e escrever há cem mil anos o contrário, parece-me que o melhor
e mais recto juiz que pode ter um escritor é ele próprio, quando o não cega o
amor-próprio. Eu sei que tenho os olhos abertos, ao menos agora. Custa-lhe a
uma pessoa, como custava ao Tasso, e ainda sem ser Tasso,
a queimar os seus versos, que são seus filhos; mas o sentimento paterno não
impede de ver os defeitos das crianças. Enfim, eu não queimo estes.
Consagrei-os ignoto deo.
E o deus que os inspirou que os
aniquile, se quiser: não me julgo com direito de o fazer eu. Ainda assim, no ignoto deo não imaginem alguma divindade meia velada
com cendal transparente, que o devoto está morrendo que lhe caia para que todos
a vejam bem clara. O meu
deus desconhecido é realmente aquele misterioso, oculto e não definido
sentimento de alma que a leva às aspirações de uma felicidade ideal, o sonho de
oiro do poeta. Imaginação
que porventura se não realiza nunca. E daí, quem sabe? A culpa é
talvez da palavra, que é abstracta de mais. Saúde, riqueza, miséria, pobreza e
ainda coisas mais materiais, como o
frio e o calor, não são senão estados comparativos, aproximativos. Ao infinito
não se chega, porque deixava de o ser em se chegando a ele. Logo o poeta é louco, porque aspira
sempre ao impossível. Não sei. Essa é uma disputação mais longa. Mas
sei que as presentes Folhas Caídas representam o estado de alma do poeta nas
variadas, incertas e vacilantes oscilações do espírito, que, tendendo ao seu
fim único, a posse do Ideal, ora
pensa tê-lo alcançado, ora estar a ponto de chegar a ele, ora ri amargamente
porque reconhece o seu engano, ora se desespera de raiva impotente por sua
credulidade vã. Deixai-o passar, gente do mundo, devotos do poder, da riqueza,
do mando, ou da glória. Ele não entende bem disso, e vós não entendeis nada
dele. Deixai-o passar, porque ele vai onde vós não ides; vai, ainda que zombeis
dele, que o calunieis, que o assassineis. Vai, porque é espírito, e vós sois
matéria. E vós morrereis, ele não. Ou só morrerá dele aquilo em que se
pareceu e se uniu convosco. E essa falta, que é a mesma de Adão, também será punida com a morte. Mas não
triunfeis, porque a morte não passa do corpo, que é tudo em vós, e nada ou
quase nada no poeta». In Garret, Janeiro,
1853.
«O sujeito poético atesta que Folhas Caídas são uma confissão
sincera da alma. Pessoalmente, não tenho tanta certeza assim. Apesar do autor
ter advertido para o facto das presentes folhas caídas resultarem do estado de alma do poeta nas
variadas, incertas e vacilantes oscilações do espírito, não nos
devemos esquecer de que estamos diante de um homem de teatro. E, antes dos
actores representarem em palco, o primeiro a fazê-lo é sempre o dramaturgo no
acto da escrita. A selecção criteriosa das folhas que apanhou,
antes que as levasse o vento, e a forma como as ordenou em livro são um acto de
consciência. Aliás, a leitura de Folhas
Caídas evidencia, diria que até à exaustão, uma teatralidade que põe
em dúvida a sinceridade da confissão anunciada. E ainda não se sonhava o
nascimento de Fernado Pessoa...» In
Farol das Letras
I
Ignoto deo
«Creio em ti, Deus: a fé viva
de minha alma a ti se eleva.
És, o que és não sei. Deriva
meu ser do teu: luz..., e treva,
em que, indistintas!, se envolve
este espírito agitado,
de ti vem, a ti devolve.
O Nada, a que foi roubado
pelo sopro criador
tudo o mais, o há-de tragar.
Só vive de eterno ardor
o que está sempre a aspirar
ao infinito donde veio.
Beleza és tu, luz és tu,
verdade és tu só. Não creio
senão em ti; o olho nu.
Do homem não vê na terra
mais que a dúvida, a incerteza,
a forma que engana e erra.
Essência!, a real beleza,
o puro amor, o prazer
que não fatiga e não gasta...
Só por ti os pode ver
o que inspirado se afasta,
ignoto Deus, das ronceiras,
vulgares turbas: despidos
das coisas vãs e grosseiras
sua alma, razão, sentidos,
a ti se dão, em ti vida,
e por ti vida têm. Eu, consagrado
a teu altar, me prosto e a combatida
existência aqui ponho, aqui votado
fica este livro, confissão sincera
da
alma que a ti voou e em ti só ‘spera».
Poema
de Almeida Garret,
in ‘Folhas Caídas’
In
Almeida Garret, Folhas Caídas, Publicações Europa América, Livros de Bolso,
2007, ISBN 978-972-102-783-1.
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