Este livro não aspira a ser mais que uma leve conversação com o leitor
sobre assuntos camilianos e, fundamentalmente, ainda um preito de veneração e
saudade que eu venho render à memoria do imortal Torturado de Seide. In
Alberto Pimentel, Trafaria, Maio de 1921.
«(…) Camilo viu-o
levantar e demolir. Riu-se quando o dropp
lhe parecia prejudicar a beleza do horizonte marítimo e o sorriso alegre da
praia. Mas creio bem que, na hora em que o dropp
foi a terra, Camilo se riria da sua própria intransigência estética no tempo em
que, indignado, clamava: Aquelles paus são sinistros como o cavallo de
Tróia; tudo aquillo é muito serio: tem não sei que de funéreo dos carroçoens do
Lagoia. Julgo que este artigo poderá ter para a gente moça do Porto um
duplo interesse: o de dar noticia de uma velharia extinta e o de ser comentário
a uma sátira antiga.
A urna da prata
É já muito conhecida do
público a carta dolorosa em que o romancista Camilo Castelo Branco, por
intermédio de Francisco Castro Monteiro, propunha vender á senhora Camila
Faria, viuva de João Albuquerque Melo Forbes e abastada proprietária, uma taça de prata que ao proponente havia
sido oferida pela colónia portuguesa de Hongkong (?). A proposta, já o tem dito
e redito a imprensa, não foi aceita. Falo nisto por dois motivos, mas apenas como
quem passa de fugida por cima de brasas: Para informar de que o objecto de que
se trata tinha o feitio de urna; e que a inscrição-dedicatória foi conservada
por mim no livro Entre o café e o
cognac, quando descrevo o gabinete de Camilo no Porto, em 1872, habitando ele então o prédio n.º
860 da rua do Bonjardim. Eis o teor da inscrição: Ao Ill.mo
e Ex.mo Snr. Camillo Castello Branco, os sócios da Bibliotheca
Portugueza De Hongkong 1869. Depois daquela época nunca vi na casa de
Seide a urna de prata, nem me consta que outros a vissem. Ignoro que
destino teria.
A Freira de S. Bento… e de Camilo
Desde os meus quinze
anos conheci no convento da Ave Maria,
no Porto, a freira Isabel Cândida, cujos apelidos de família eu então ignorava.
Sabia apenas que ela tinha educado naquele convento a filha de Camilo, dona
Bernardina Amélia Castelo Branco, a qual eu nunca vi porque alguns anos antes,
em 1865, saira para casar. A freira Isabel
Cândida foi, depois disso, professora de minha prima Aureliana Coelho Bragante
ou sua mãezinha, como se dizia no
jargão das meninas do coro. Muitas
vezes acompanhei minha mãe e irmãs em visita àquela nossa parenta, que nos
recebia na grade com a freira e nos regalava com rebuçados e bonbons. Outras vezes éramos convidados
a ir lá almoçar e então também ia comnosco meu pai, que salvára minha prima em
doenças graves e tinha mais clientes de partido naquela comunidade. Ah!, quanto
me lembro ainda desses almóços freiráticos, em que a doceria era selecta, o
café e o chocolate primorosos, especialmente o chocolate, consistente e
aromático, bem espanhol, que tomávamos lardeando-o com um delicioso pão de ló
fofo e loiro.
Minha prima estimava ver-se
rodeada de parentes, ria de vontade com os ditos de meu pai, que fora sempre um
homem dotado de bom humor, e a freira Isabel Cândida conversava com animação e
espirito, contando casos do convento e casos da cidade, como se conhecesse
estes tão bem como aqueles. Mas a freira era velha e feia, trigueira, angulosa
e alta, tinha a voz forte, um nariz respeitável, e sombras de buço. Eu nunca
pensei, nem o ouvi dizer a ninguém, que aquela mulher, tão balda de encantos
feminis, pudesse haver inspirado atenções afectuosas a um homem vulgar, quanto
mais a um homem superior, tal como Camilo Castelo Branco. Nem me quis parecer
que dentro daquele hábito negro de beneditina tivesse palpitado um coração
mundano e frágil. Quea freira Isabel Cândida conhecesse Camilo era de presumir,
visto que lhe tutelára a filha no convento; e que conversasse com êle quando
lhe levava a pupila á grade era bem natural, seria a coisa menos venenosa deste
mundo.
Assim, pois, foi que eu interpretei as palavras de Camilo numa carta
dirigida á mãe de sua filha e por mim publicada no Romance do romancista: As
minhas relaçoens com a freira acabaram, e eu te direi os motivos que se deram.
Supus que seriam apenas simples visitas no locutório, mais ou menos íntimas,
sem julgar que pudessem ter sido relações inconfessáveis, até mesmo porque o
romancista não as ocultava da mulher que apaixonadamente se deixara raptar por
êle». In Alberto Pimentel, O Torturado de Seide, Camilo Castelo Branco,
Livraria Manuel dos Santos, Lisboa, 1921.
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