«(…) Um aluno dum centro
universitário não se faz apenas pela frequência das aulas. Há todo um conjunto
de actividades circum-escolares que contribuem para lhe dar a formação
universitária, característica do seu tempo. Ε Coimbra não escapava à regra no
século XVI, como não escapa hoje. Assim, o ano de 1548 é particularmente fértil em manifestações académicas. Já me
referi, de passagem, à oração de abertura do Colégio das Artes,
pronunciada pelo francês Arnaldo Fabrício, em 1548. Se José Anchieta, chegado nesse ano a Coimbra, não pôde
ouvi-la, não teria qualquer dificuldade em fazer a sua leitura, pois foi publicada
em Coimbra, no mesmo ano, pelos impressores João Barreira e João Alvares. Em 17
de Julho desse ano de 1548,
pronunciou o mestre de Retórica João Fernandes um discurso intitulado De
celebritate Academiae Conimbricensis Sobre a Fama da Universidade de Coimbra
que foi a dissertação de licenciatura de Jorge Alves Osório, meu antigo aluno e
hoje professor catedrático da Faculdade de Letras do Porto. Encontra-se
publicada esta oração, com tradução e um valioso estudo introdutório do seu
tradutor moderno, desde 1967, em
edição do Instituto de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras de Coimbra.
A ocasião que propiciou este
discurso universitário de 17 de Julho
de 1548, foi a visita que fez o Infante Luís, irmão de João III, que
decidira fazer estudar em Coimbra seu filho bastardo António, o futuro prior do Crato e efémero rei de Portugal. António estava desde o ano anterior, 1547, no Colégio de São Jerónimo, de
onde passaria em 1548 para o
Mosteiro de Santa Cruz, vindo a licenciar-se em Artes, em 1551. No seu discurso em Julho de 1548, Mestre João Fernandes desenrolou perante os olhos e ouvidos
do irmão do Rei, as glórias do corpo docente universitário, referindo, com
maior ou menor extensão, o currículo e os méritos de mestres como os teólogos
Afonso Prado, Marcos Romeiro, frei Martinho Ledesma e Paio Rodrigues Vilarinho,
os canonistas Martinho Azpilcueta, o doutor Navarro, João Morgovejo e Fábio
Arcas Nârnia, os juristas Manuel Costa e Ascânio Escoto, os médicos Rodrigo
Reinoso, Francisco Franco e António Luís, o matemático Pedro Nunes, os mestres
de Artes, Gaspar Bordalo, Vicente Fabrício Eusébio.
De todos estes, a figura mais
prestigiosa era o canonista Doutor Navarro, Martinho Azpilcueta, um basco como
o pai de José Anchieta. Ε pergunto a mim mesmo, se uma das razões da vinda
de Pedro Nunez, estudante de Cânones, e seu irmão José Anchieta para Coimbra
não terá sido exactamente a presença na universidade do famoso canonista
Azpilcueta Navarro, tanto mais que não é impossível admitir relações de
conhecimento mútuo, dada a comum origem basca. Lembro-me de que, quando
estudava (1947-49) em Oxford, acorriam àquela Universidade muitos médicos
catalães, atraídos pela reputação dum patrício, professor de Medicina, de nome
Trueta, se me não engano.
A terceira oração de 1548, e a essa pode muito bem ter
assistido José Anchieta, ou tê-la lido, porque foi publicada de seguida, foi a
de Belchior Beliago, em 1 de Outubro de 1548, dia da abertura solene das aulas do ano lectivo de 1548-49.
Beliago falou das disciplinas ensinadas na Universidade, pondo em relevo o
mérito de cada uma num discurso que intitulou de De Disciplinarum omnium
studiis oratio ad uniuersam Academiam
(Oração sobre todas as Disciplinas, tradução de Maria Helena Pereira, Porto,
1959). Também Anchieta deve ter passado em Coimbra os
momentos mais críticos do Colégio das Artes e do seu corpo docente
internacional, subsequentes ao falecimento do principal André Gouveia, em 9
de Junho de 1548. A hora da
morte, contava-se em Coimbra, o principal, perguntado se queria um confessor,
respondeu soli Deo, a
Deus somente. Ε esta resposta fora considerada uma confirmação do espírito
protestante de André Gouveia e das tendências reformistas de que ele e
alguns dos professores que trouxera de França, vinham sendo acusados.
Hoje, com a publicação dos
processos na Inquisição (maldita) de George Buchanan,
Diogo Teive e João Costa, e com as informações proporcionadas pela correspondência
entre Diogo Gouveia Sénior e o Rei, sabe-se que a intriga vinha sendo
montada de longe, tanto no tempo como no espaço. A fonte das maquinações
secretas que levariam os três lentes mencionados ao tribunal da Inquisição (maldita) estava em Paris,
no velho e rancoroso Diogo Gouveia e no seu ódio incurável ao
sobrinho André que abandonara o Colégio de Santa Bárbara na capital francesa de
que o tio era principal, para fazer uma carreira coroada de êxito em Bordéus e
em Coimbra». In Américo Costa Ramalho, José de Anchieta em Coimbra, Revista
Humanitas, volume XLIX, 1997, Universidade de Coimbra.
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